No
crepúsculo nascente, figuras distorcidas pela mágoa na alma de uma vagabundo
ignorado pelas sombras que se projectam na alma, um semblante negro eleva-se
das cinzas do passado. Nascido da dor e da destruição do seu povo jurou
vingança sobre o sangue dos seus antepassados, feto da morte renasceu para a
vida para resgatar à vida os pecados do passado.
Apoiado sobre o joelho magoado ergue-se
para o futuro em direcção à noite que se adivinha, augúrio do seu destino a
noite que apadrinhou o seu nascimento era negra como a sua alma e só como o seu
sentir... A sombra negra da morte cobre de negro o seu destino... Algo brilha
na sua mão... É o instrumento da sua vingança, sente o seu gume afiado
trespassar a frágil pele da sua mão, sente impotente a dor e o sangue que
escorrem deliberadamente pelo seu pulso, e jura... Jura aos céus, à terra e à
morte... Vingança é o meu nome... Morte é a Minha vida, eis que me torno o
instrumento da destruição... Eis que me ergo morto, para a morte viver no
coração dos meus inimigos...
Para trás ficou a aldeia na qual em
tempos idos fora feliz... Onde em tempos esquecidos na névoa do tempo o riacho
corria em claras águas, flores pintalgadas de aromas perfumados invadiam a
nossa mente com a doce candura do seu aroma, onde as crianças brincavam junto
ao velho carvalho que os acarinhava com a ternura dos seus verdes anos...
Enfim, onde a vida nascia e crescia; era agora a sepultura de um povo, o cálice
de cinzas anónimas, sem rosto, que se misturavam no cruel sabor a morte que
pairava na neblina que se estendia ao longo do riacho vermelho de sangue... De
sangue da terra que chorava a perda de uma povo... Ninguém havia escapado ao
cruel gume do inimigo que queimava... Que ardia na alma, na carne...
No ar pairava o cheiro à carnificina, o aroma de carne
queimada entranhava-se nas narinas do viandante que passava, como punhais de
dor que penetravam nas narinas, traziam a dor da morte... a mágoa das
despedidas... os céus choravam lágrimas impotentes para parar as hostes que invadiam
os campos, ecos distorcidos da dor que se soltou daquelas gargantas feridas,
troam pelas negras nuvens que se juntam recordando as memórias inacabadas do
silêncio que ficou, chorando as palavras murmuradas em surdina pelas mães mudas
de dor, de peitos rasgados pelos gritos dos seus filhos...
A morte bailava pelos campos,
onde em tempos idos a vida dançava, vivalma jazia naquele solo maldito... Mas
no silêncio ensurdecedor um raio fugido dos infernos sulfúreos rasga o azul
veludo e queima a doce face da terra, incendiando o seu seio, e dessa união
fatal, nasce o fruto do seu pecado... Das chamas nascido, clamando por
vingança, alimentado pelo sangue dos seus inimigos, nasceu um corvo maldito,
que da dor do seu povo homem se fez... e das cinzas do passado se ergueu e
caminhou em direcção à negra noite, que o recebeu no seu seio, como se dela
fizesse parte aquela alma negra, como seu filho fosse...
Cruéis
tempos vivemos... mas mais cruéis é o futuro que virá, ventos de vingança
sopram promessas de morte... deixam entrelaçadas no seu silêncio promessas de
dor e mágoa. Pegadas frias passam pela quente terra que ferve de dor, pelo
sangue vertido pelo ódio daqueles seres, chegaram pela noite, partiram antes
dela chegar, mas consigo trouxeram uma negritude mais obscura que a própria
noite, e agora chora o vento as lágrimas secas que os mortos não podem
chorar...
Um
ser misterioso ergue-se das chamas... no seu olhar arde o fogo da vingança, o
seu destino estava traçado...trazia sangue nas suas mãos... sedento de morte
renasceu do pecado... De olhos fechados sentiu o vento frio beijar as suas
faces, e soltou um longo e seco riso, e deixou as lágrimas temperadas de dor e
desespero correrem livremente pela sua face, alojando-se no canto dos seus
lábios, onde morreriam... Ria porque vivia, chorava porque tudo morrera e mais
morreria...
Seus
olhos castanhos-claros clamavam pela morte... porque havia ele de viver? Porque
tinha sido ele o escolhido? Não!!!... Recuso tudo... Quero paz da morte...
Oh!!! Deuses sejais bondosos e dai-me a paz eterna... Eu rogo-vos, dai-me a
morte... Deixai-me morrer na ponta deste punhal que sinto ao meu peito...
deixai-me partir... Tomai a minha vida...
E de um só movimento
cravou o punhal no seu peito sedento de partir, e doce lágrimas de sangue
correram, lágrimas que logo se tornaram num rio que corre, fugindo à
nascente...e regaram a terra inundada pelo sangue dos seus parentes, sentiu uma
gélida dor trespassar o seu peito... Mas pior foi a dor da desilusão... Apesar
de ferido, seu coração batia... E nesse momento compreendeu, nesse instante viu
que nada mais era do que um instrumento... Um instrumento nas mãos de algo
superior que calmava pela vingança dos seus filhos... E se era vingança que
queriam, morte iriam ter...
Limpou o punhal
ensanguentado na sua capa negra, colocou-o junto às suas botas altas, de um
negrume mais negro que o da sua alma, e ajoelhando-se agarrou no sabre que
jazia no chão... Perdeu singelos momentos contemplando a beleza dos entalhes no
punho e na bainha... Dois dragões entrelaçados numa união mística e mágica,
ornamentavam-no. Delicadamente colocou-o no seu dorso, por detrás da capa... E
Mais uma vez olhou o céu e mais uma vez chorou...
E em direcção à
noite partiu, sua capa flutuante fugia do seu dono, temendo o seu destino...
Qual corvo perdido na imensidão esmagadora do silêncio da morte que o rodeava,
partindo em busca da sua presa... Vingança o seu nome...
Raven havia
renascido... Filho da terra e do trovão... Vingança e morte eram as suas
promessas, das cinzas havia nascido e para ela voltariam os seus inimigos e
todos aqueles que se colocassem entre eles e o prometido...
Corvo da morte ou
corvo maldito, na linguagem nativa Raven, era um jovem de cabelos longos e
negros, filho de Osgrod e Eneida, tinha sido um jovem guerreiro, dotado da
coragem dos destemidos e da eloquência dos predestinados. Seu pai, Osgrod,
chefe dos Corvos, povo que habitava junto ao rio no planalto que fazia
fronteira entre a montanha, território habitado pelas gentes da montanha e a
floresta, zona dominada pelo povo da floresta. Sua mãe, uma doce donzela, que
na sua candura fazia inveja ao próprio brilhar do sol. De seu pai havia herdado
a força e a liderança, de sua mãe a beleza desmedida... Filho único desta união
foi educado de modo a ser um digno sucessor de seu pai, conhecido pela justeza
e firmeza das suas decisões, líder respeitado por todo o povo e pelos povos
seus vizinhos.
Mas de que
tal havia servido tal?? De nada... Pois agora jazia morto... e dele apenas
cinzas restavam... apenas seu filho vivia. Vivia por capricho desditoso do
destino... Rumo
a um futuro adivinhado, caminhava aquela alma negra... em que pensaria, não me
atreverei a contar... Apenas vós podeis adivinhar... Pela madrugada dentro
fugiu dali... passos apressados fugiam às recordações de dor... mas essas eram
mais rápidas... e teimavam em pesar naquela mente fustigada pelos ventos da dor
e do passado... Perdido nos seus pesares, nem repararia naquele pequeno
objecto, se não fosse o seu tremeluzente brilho, que reflectia o luar das luas
que dançavam no céu negro... Pegou naquele pequeno objecto e chorou... por uma
última vez, chorou de dor.... Um fio, um insignificante pedaço de metal, a
causa daquelas lágrimas... Mas não... não era o fio... mas sim as recordações a
ele associadas...
Recordações
de mágoa e de dor... Esse sentir que nos fere e nos dilacera o frágil viver em
que passamos por este efémero mundo. Aquele pequeno cordão de metal precioso
havia sido pertença de uma bela dama Akr’a. Curioso... como um ser pode ser tão
forte e frágil numa génese comum, que se funde numa só identidade. Como poderia
o mensageiro da morte sucumbir perante um pedaço de metal brilhante?... Mas
não... não era o objecto em si, mas toda a simbologia envolvente a tal, toda a
carga emotiva que o rodeava como uma áurea invisível. Recordações esquecidas
noutra vida fluíram de novo para o presente, transportando aquele corpo cansado
para o passado distante... para um passado que magoa o presente, feito da dor
do futuro... um passado esquecido, mas no entanto recordado a cada instante do
seu nascimento...
Perdido
na dor do seu passado, navega na mágoa das recordações, e regressa a um passado
distante, para além do portal da morte. Agarrado aquele pedaço insignificante,
solta lágrimas salgadas de dor e de paixão, lágrimas que correm sequiosas do
solo queimado, procurando humedecer o chão sequioso e árido, mas antes de
beijarem o seu rude corpo, as salgadas dádivas evaporaram-se no halo quente no
fogo que se extinguiu, mas ainda continua lavrando invisivelmente no interior
da terra.
Aquele
pedaço de metal dourado, insignificante para o resto do mundo, estava
carregando de um significando pungente para aquela alma negra, e assim embalado
pelos braços da vida passada, mergulha nas águas torpes da memória, e viaja até
ao tempo em que os Corvos viviam em paz como a vida...
Ainda
lembra aqueles tempos idos de calma melancolia, o rio correndo livremente em
direcção aos braços da imensidão azul do mar. Tempo de alegria e felicidade
reinavam por aquelas pradarias extensas e verdejantes, como os olhos da
primavera que se adivinhava nos áugures das aves vindas do sul. Como então a
vida era bela e pacífica, como é doloroso ver que o verde do passado deu lugar
ao fogo do futuro, nunca mais aquelas terras serão cobertas de flores, pois
para sempre ficaram marcadas pelo sangue derramado, pela dor daquelas almas
errantes, que vagueiam por aqueles campos procurando o sossego e a paz em
tempos seus, e agora perdidos nas brumas do passado.
Memórias
passadas invadem o cérebro do jovem corvo, que na noite se fez homem, o
nevoeiro dos tempos inebriou-lhe o cérebro e levando-os nos seus braços,
conduziu-o a um passado distante; deixemo-nos envolver nesse místico nevoeiro e
perdidos na sua doce traição voltar a um passado distante, e viver vidas
vividas...
A
lua ia alta, cheia e redonda, enchendo o ar com o seu mistério e doce aroma,
embalando os gritos que saíam de uma velha cabana junto ao rio, gritos de dor
de alguém que se prepara para dar ao mundo nova vida. Preparava-se para ver a
luz do dia mais um rebento da família dos corvos. Como é misteriosa e bela a
génese da vida, fruto do prazer, nascido na dor, para se fazer vida...
Germinado na paixão entre dois entes que se complementam e se abraçam num beijo
quente e místico, unindo as suas almas e corpos num momento único em que duas
vidas incompletas de complementam reciprocamente, o fruto daquela paixão nasce
no meio de gritos de dor de uma mulher, que exalta preces de dor à Deusa Mãe
que lhe entregue o seu rebento são e saudável, e neste misto de prazer e dor,
nasce o fruto... O fruto de uma família, que se espera que eleve em voos mais
altos e mais ousados o sangue da família, e que ouse ir mais longe, que desafie
ser mais forte, que atreva-se a ser mais veloz...
Eneida
gemia de dor, e tremia de medo, de medo de falhar, e de não dar a Osgrod o
filho que este sempre quis, o filho que assegura-se a continuação da sua
linhagem e levasse o nome dos Corvos mais longe. Tinha sonhos grandiosos,
projectos imperiais para o seu filho, ousava ver o seu filho imperador,
reinando sobre as outras tribos, instaurando a paz e a harmonia pelo mundo dos
mortais, tornando-se semideus, assegurando o seu lugar junto do Deus trovão e a
Deusa Terra.
E
pela noite os gritos de Eneida fizeram-se ouvir pelas estepes que acompanhavam
o curso do rio até ao mar, já nascia o dia quando esses gritos de dor foram
silenciados pelo choro de um recém-nascido, que brindava o seu novo mundo, com
um celestial acorde de lamentos, tirado do ventre materno, lugar quente e
seguro, para o frio, cruel e inseguro mundo dos vivos, chorou lamentando a sua
triste sorte, confuso por não saber onde estava e porque o haviam arrancando ao
seu refúgio materno. Osgrod tinha o seu imperador, era um rapaz...nascia
Raven...
Noutra
cabana no meio da floresta, à mesma hora da mesma noite, outros gritos eclodiam
na noite. Em orações pela vida de um feto frágil, as árvores erguiam os seus
verdejantes ramos aos céus, implorando à lua que permitisse aquele nascimento. Uma
mãe só e perdida no verde deserto ardia nas dores do parto, agoniando e
desesperando, mas tinha de ser forte, em nome daquele rebento que queria ver a
luz da lua... A Manhã nascia e a noite morria quando finalmente aquela criança
saiu do ventre materno, relutantemente abriu os pulmões para a vida e soltou um
choro de vida, saudando os últimos raios de luar que entravam pela janela, e
banhavam a cama onde jaziam mãe e filha.... Em homenagem à sua tribo e à sua
madrinha, a lua, chamar-se-ia Moonwoolf...
Mal
sabiam estas duas criar que as suas vidas estavam interligadas por laços mais
fortes que a vida, mais fortes que a morte, e que na vida e na morte seriam
sempre um e apenas um, separados seriam incompletos, mas juntos seriam um ser
completo, só juntos se sentiriam bem...
Raven
estava confuso, como? Como poderia ele ter recordações de uma pessoa que não
conhecia, nunca a tinha visto, nunca tinha conhecido outras tribos, o seu pai,
Osgrod, sempre evitara o seu contacto com tribos estranhas, apenas conhecerá os
Corvos, desconhecia que existiam outros... Mas a verdade é que elas estavam
lá... aquelas recordações. Mesmo antes da recordação da sua doce Akr’A. Mas o
torpor das recordações idas era mais forte, e logo arrebataram o jovem àquelas
cogitações e levaram-no de volta ao passado...
Recordações
da sua mocidade passaram-lhe correndo pela memória, os seus primeiros passos, cambaleantes
pela relva ver e fria, baptizada pelas gotas de orvalho nocturno, que beijavam
as delicadas pétalas das flores que dormiam sobre o verdejante tapete. Recordou
a primeira vez que a sua prometida, Akr’a, se fora apresentada, tinha uns meros
seis anos de vida, e estava mais interessado no pássaro que voava para um ramo
distante, que na jovem que lhe estava destinada. Como é misteriosa a vida, e a
atracção entre dois seres, ao princípio ignoram-se, uma relação fria e
distante, mesmo desinteressada; mas à medida que o tempo passa esse sentimento
muda, e o que era frio e distante, transforma-se numa atracção mútua, cada vez
mais forte e próxima, e o gelo inicial quebra-se, e onde antes corria o gelo,
corre agora um rio de sangue quente, galgando pelas veias acelerado pelo calor
da paixão, é este o mistério que é a vida, como ela encerra em si contradições
que nos parecem evidentes e naturais.
A
própria vida em si constitui uma contradição, cada dia fingimos viver um dia,
acordamos e pensamos que mais um dia de vida nos brinda com os raios de sol,
quando de facto mais um dia de vida nos é roubado pelo tempo, esse infame
traidor, que nos prolonga o sofrimento e nos obvia os tempos de alegria, essa
ilusão irreal que nos atormenta ao longo da nossa fugaz existência. Vede como
ele nos engana, quando vivemos em momentos de tristeza, demora em passar,
demorando o nosso sofrimento, tardando em trazer momentos de alegria; mas
quando esses momentos chegam, logo ele se apressa em fugir, em nos devolver a
tristeza que não queremos. Enfim, é essa dualidade, esse sentir, que torna a
vida o místico que ela é, a capacidade de sofrer e de amar, de morrer, e mesmo
assim ser recordado, e renascer nas memórias de alguém que nos recorda com
paixão, apesar de não mais existirmos, continuamos a existir, nem que não seja
nas memórias de algum desconhecido que ignorados nos recordar.
Seriam
essas recordações que fizeram Raven viver? Seria a sede de Deuses revoltados
contra o fado de um povo? Não sei.... Não vós posso dizer a certeza, tudo o que
eu poderia dizer-vos, seria insuficiente, impreciso e deficiente, tirai vós as
vossas conclusões, apenas sei que ele vive... E com eles as recordações de um
povo...
Mas
agora é tempo de também nós nos deixarmos envolver pelas brumas do passado, e
descortinar o que se esconde atrás dos cortinados de nevoeiro que nos vendam os
olhos... Vejamos as imagens que vai na memória do jovem corvo...
O
tempo fluía no seu cérebro, desde o primeiro beijo às primeiras aulas sobre a
arte de manejar as armas, que um dia teria de utilizar em nome do seu povo. Relembra
com gáudio o primeiro pôr-do-sol passado com a sua amada junto à pequena queda
de água, onde os peixes saltavam alegremente, tentando vencer a força do rio;
relembra sorridente, o susto causado pelo velho urso, que ali se deslocava
paras as suas pescarias habituais. Enfim pequenas coisas que na altura pareciam
insignificantes, mas que agora davam outro tom à sua velha vida. É curioso...
Passamos uma vida ignorando essas pequenas coisas, desconhecemos essas pequenas
insignificâncias; voltados sempre para as grandes questões; e no fim, quando já
pensamos que nada faz sentido, e nos encontramos confusos, perdidos no vazio
que se tornou a nossa vida, são essas pequenas coisas que aparecem a colorir as
nossas recordações, não as grandes questões esquecidas e arrumadas no baú das recordações.
São esses pequenos momentos que nos fazem sorrir, quando as trevas da dor nos
rodeiam, que nos fazem soltar doces lágrimas de saudade, toda essa torrente de
emoções que nos aborda quando menos esperamos, e nos assalta o espírito e nos
consola no meio da tempestade...
E
eram esses momentos que invadiam o cérebro de Raven, que o invadiam, e que ora
o faziam chorar, ora sorrir, e nesta dualidade de sentir ia recordando os
tempos que não voltam a ser, memórias perdidas em outra vida, encurralado nesta
maldição, estava proibido de descansar, queria juntar-se na morte aos entes
queridos perdidos para a terra, mas não podia... A sede de vingança
ordenava-lhe que continuasse vivo, e que lutasse até ao fim...
E
nesse sentir de frustração, lembrou-se da primeira caçada, e como se sentiu
quando regressou de mãos vazias, e as palavras encorajadoras de seu pai, que
lhe dizia então: “meu filho, não fiques assim triste! Outras caçadas virão!
Pensa nas vidas que foram poupadas, e que poderão crescer, para se tornarem
mais fortes, para te darem mais luta! E quando estiverem fortes, e tu
conseguires vencer, sentirás uma maior alegria! Pois, repara, que a vida com
demasiadas facilidades não tem sabor algum, apenas uma vida dura, em que cada
dia é uma batalha pela vitória, pela sobrevivência, quando tiveres alcançado a
paz e o sabor da vitória, estas serão mais doces, mais saborosas!”
Até
hoje nunca entendera o verdadeiro significado de tais palavras, mas hoje...
Aqui...!!! No campo onde o sangue do seu sangue jazia, onde a terra beberá o
sangue da sua estripe, atingirá o significado de tais palavras. Mas agora era
tarde demais para agradecer a seu pai, para lhe dizer que finalmente
compreendia o que lhe quisera dizer naquele dia, e ele infante, não havia
entendido.
Mas
à sombra daquele céu negro, carregado pelo negrume da dor que varia a planície,
muitas mais recordações viriam e apunhalariam o coração deste jovem, até acabar
por sucumbir à realidade, e aperceber-se que aquele jovem do passado já nada
tinha haver consigo, ele tinha morrido, e no seu lugar renascido uma alma
negra, carregada de ódio e de mágoa, que apenas tinha por objectivo a vingança,
sem espaço ou tempo para amar e ser feliz. Os sentimentos bondosos haviam
perecido naquele campo de batalha, em seu lugar apenas sentimentos malévolos
enchiam a sua alma...
E neste palco a que chamamos vida, o tempo não
tinha importância naquela noite, poderiam ter passado séculos, milénios, mas a
noite continuava, e à medida que aquele corvo negro envelhecia, mais amarga se
tornava a sua sede de vingança... Era por isso que ele ali estava, era para tal
móbil que os Deuses lhe haviam dado vida, então cumpram-se os seus
desígnios....
E
quando pensava que estava a salvo das velhas recordações, nova vaga
percorre-lhe o corpo, e instala-se-lhe no cérebro e leva-o noutra viagem no
tempo, arrastando-o numa torrente de sentimentos, que pensava escondidos e
fechados no cofre do passado, mas o tempo, qual hábil ladrão consegue abrir
todas as fechaduras. E quando menos esperamos, assalta-nos com os receios do
passado...
Relembra
como sempre receou ser impotente par proteger aqueles que amava, para proteger
o seu povo, lembra-se de contar os seus medos, os seus receios, os seus
pesadelos, a seu pai; e lembra-se do riso sarcástico e jocoso que seu pai lhe
lançara, apelidando-o de infantil, dizendo-lhe que um Corvo nada receia,
enfrenta o futuro por mais negro que ele seja. Ousa enfrentar os Deuses e
vencer se necessário for, mas que não liga a medos, porque não passam de
convicções de falhanços que podem nunca acontecer, convicções que devem ser
mortas na sua génese, para que quando em luta, não sejam recordadas, e o medo
não sobrevenha ao raciocínio frio e mecânico, que a vitória requer. Mas para o
reconfortar, também, lhe havia dito, que é natural todas as pessoas terem
receios, que ele próprio tinha receio a perde-lo e a Eneida, sua adorada
esposa, mas que afastava tal receios, que apenas lhes dariam importância no dia
em que passassem de receios, a terríveis realidades...
Será
que teria razão o velho Osgrod??? Será que devemos ignorar os nossos receios? Devemos
apenas considera-los se tornarem-se reais? Ou devemos tê-los sempre presentes?
Que dilema este que nos assalta a mente... O medo! Sempre o medo, quem nunca
teve receio de algo? Mente quem disser que não, pois o medo é tão natural como
a existência, é algo que faz parte da vida. Vede que até o mais insignificante
dos seres, que a mais irracional forma de vida, mostra receio de algo... Quem é
que se atreve a dizer que nada teme... Apenas os loucos.... Qualquer forma de
vida tem receios, receio dos seus predadores, e os seus predadores têm medo de outros
predadores. Até os seres, ditos racionais, têm medo... Medo do desconhecido....
Receiam o que não compreendem... Vede como a maior parte deles receiam a morte,
um facto tão natural como a própria vida, e no entanto receiam esse momento...
Vede como receiam aquilo que a sua mente não consegue entender, acontecimentos
naturais, que face aos seus princípios, aos seus conceitos, não poderiam ter
acontecido. E então para explicar tais acontecimento, dizem que é um acto
sobrenatural, obra de um ente divino superior à sua raça, e surge a religião.
Acto de fé cega, de crença num ente misterioso que comanda toda a vida, e
apenas a ele se deve a origem de todo o existir... Mas existirá esse ser
materialmente? Ou será apenas uma idealização conjunta, de um grupo de seres,
que para enfrentar os seus receios, que para explicar aquilo que os seus
conceitos limitados não conseguem intelegir, criaram esse ente imaginário...???
Não
será o renascimento de Raven prova suficiente da existência dos Deuses? Da sua
existência material? É verdade ou não é, que ele apenas vive graças aos
auspícios dos Deuses? Ou será que Raven nunca morreu, ou morreu e não renasceu,
será apenas uma recordação, ou uma personagem saída da imaginação febril de
algum escritor que desconhecemos??? Será realidade ou mera ficção? Mas antes de
perguntarmos se Raven existe, temos de colocar uma pergunta necessária, que se
impõe como premissa: será que nós existimos? Serás que vós existis? Sim...!!!
Porque antes de Raven existir, tendes vós de existir, porque Raven apenas
existem em vós, em cada um de nós, que lê ou escreve a sua estória, que recorda
a sua lenda...
A
essa pergunta apenas lhes poderei dar algumas ideias, nunca certezas, pois só
cada ser em si poderá saber se existe... Não basta concluir que existimos
fisicamente, porque as pedras do chão que pisamos a cada dia, é indiscutível a
sua existência material, mas terão consciência da sua existência? Poderão elas
dizer que existem verdadeiramente... Não! Não podem, porque viver não é apenas
existir, a vida tem de ter um significado em si mesmo, apenas um ser com
consciência da sua existência pode afirmar que existe. Ah! Direis vós que os
seres irracionais não têm consciência, logo não existiriam segundo o meu
pensar, quando é inegável que eles existem... Tal argumento cai na falácia de
partir do pressuposto que os animais irracionais não têm consciência de si
próprios, quando é facilmente demonstrável o contrário. Vede que essa consciência
se manifesta em vários aspectos da sua vida, desde logo no modo da sua
apresentação, em muito depende do seu aspecto físico as hipóteses de assegurar
a continuação da sua linhagem... Não será suficiente tal para demonstrar a
existência de uma consciência, que lhes diz que devem cuidar do seu aspectos de
modo a continuar com a sua linhagem? Mas para aqueles que acham que tal não
será suficiente, sempre se dirá que quantas vezes não nos maravilhamos com
actos, ou atitudes de animais irracionais idênticas as dos seres racionais? Direis
vós que são actos resultantes de uma mera aprendizagem por imitação. Ao que
contraponho dizendo que a aprendizagem, seja qual ela for, é sinal de uma
consciência de existência, mas mais se dirá, por ventura os primeiros actos e
gestos que um ser racional recém-nascido aprende, não são adquiridos por
imitação? E ninguém poderá desmentir que esses seres têm consciência de si
mesmos... Porque é que aqui isso é verdade e ali já não??? Porque na realidade
é verdade nos dois casos que existe uma manifestação de uma consciência em
formação, mas em que ambos os casos já existe a consciência de uma existência
própria, individualizavel face aos demais membros do grupo, quer do ponto de
vista dos restantes membros, quer do ponto de vista do próprio indivíduo; ele é
individualizavel e individualiza-se...
Mas
isto é apenas um aspecto da existência, outro aspecto é o da qualidade dessa
existência, problema diverso do primeiro, pois aqui já se pressupõe uma
existência, para aqui chegarmos, temos que conclui que existimos, pois se
concluímos que não existimos, não poderemos questionar a qualidade de algo que
não existe. Será existir, uma vida sem sentido, em que erramos pela face da
terra, procurando um rumo? Ou será viver, aquele existir, em que sabemos o que
queremos e vamos em busca desse objectivo. Qual desses dois é o verdadeiro
viver? Dir-vos-ei que o são ambos, a diferença reside no seguinte aspecto:
enquanto no primeiro caso é um existir vazio, oco, sem sentido, sendo o seu teor
nulo, o segundo é um existir carregado de sentidos, de emoções, de experiências
vividas... É nisso que reside a essência do existir... só nesse sentido podemos
dizer que Raven não existe, pois aquele corpo é apenas um receptáculo vazio,
oco, sem sentir...
Mas
estamos a afastarmos do móbil que me levou a escrever-vos esta narração,
voltamos para junto de Raven, fugi a estas minhas cogitações....
Vede
como o jovem Raven se afunda nas memórias, ainda recorda os passeios pelo campo
com a sua amada, o seu amor em génese que crescia, apesar de imposto este
prometia florescer, ainda lembra para sempre esquecer, e nunca mais recordar o
seu gentil rosto... Vede como as coisas às quais ele não dava valor algum, são
as que agora têm mais valor, e aquelas que ele recorda saudosamente.
A
noite morria nos braços do dia, o sol já despontava atrás das montanhas
cobertas do gelo de Inverno, era tempo do homem transformar-se em corvo, a
maldição de Raven manifestava-se pela primeira vez. O jovem olha maravilhado o
sol a nascer, e o seu corpo a transformar-se, as penas começando a cobrir o
corpo, substituindo a pele que antes lhe cobria o corpo, o bico que crescia, os
braços que se formavam em asas, e as pernas em garras, o sol ainda acordava e
dava os primeiros bocejos ensonados, já Raven havia transformado em corvo. E
pela primeira vez sentiu o vento beijar o veludo das suas penas, era corvo, mas
tinha consciência de homem...
As
primeiras tentativas de voar, mostraram-se infrutíferas... Apenas conseguiu dar
pequenos pulos, que não se poderiam considerar voos, outras aves que se
alojavam em alguma árvore vizinha pareciam rir e gozar com aquele corvo
desajeitado, o seu interior sentia revolta, e ódio, porque??? Porque lhe haviam
os Deuses dado vida, para lhe infligirem esta maldição??? Porquê??? O Destino
corre por caminhos escondidos, procurando refugiar-se de quem o persegue, nas
noites frias do fado... Passa por misteriosos vales e atalhos, toma rumos
incertos e desconhecidos, para no final atingir o fim desejado por ele, e
apenas por ele, e por mais ninguém... Pensamos que somos donos do nosso viver,
que dominamos o nosso acontecer, mas quando menos esperamos, algo nos mostra o
quanto errados estávamos, e num ápice o tapete que se nos estendia diante de
nós desaparece, e caímos desamparados no abismo que é a nossa vida. Esse abismo
omnipresente, apenas escondido pelas ilusões do nosso viver, que espera o
momento ideal, para se descobrir e nos engolir na sua ânsia devoradora, de modo
a que nunca mais fujamos do seu interior, para sermos devorados no seu eterno
apetite voraz...
Como
é estranho toda esta letargia de viver e ser vivo! Como pode alguém de noite
ser homem e de dia ser corvo, que maldição esta? Que estranho feitiço havia
nesse pacto entre a terra e os céus, nem homem, nem corvo, e no entanto sempre
os dois presentes, numa miscegenação constante e permanente.... São estes os
estranhos rumos do destino, soprados por ventos invisíveis, qual vela manejada
por mãos hábeis e destemidas, que enfrentam os ventos que sopram e rasgam o ar,
com a sua força indomável, que destroçam tudo o que se opõe à sua vontade
indomável, assim é o destino, que em constantes círculos acaba por chegar a
algum porto desconhecido, em cuja sombra encontraremos novos e insondáveis
mistérios.
Mas
voltemos para o nosso corvo que tenta voar, mas em vão tentava soltar as suas
asas ao vento. Desajeitado tentava... E, novamente, voltava a tentar... Em seu
redor, as aves mais pequenas, pareciam jocosas, rindo da sua figura
desajeitada, passando por ele em voos acrobáticos, mas na sua dor e frustração
a ela não ligava, apenas pensava no que se havia tornado, e com que finalidade
haviam dos Deuses concedido o privilégio de viver, para logo depois o condenar
a esta prisão, a esta maldição...!!!
Cansado
de tentar e falhar, chegou à beira do princípio, com o coração cheio de dor e
mágoa, olhou o fundo do abismo, e desejou sentir o seu frágil corpo esmagar-se
contra aquelas pedras, e a sua vida retomar às cinzas do passado, para junto
dos seus entes queridos, para as cinzas de onde nunca devia ter saído... Olhou
uma última vez para o horizonte, observou o seu azul celeste, recreio de outras
aves, habituadas aos seus desígnios... Vislumbrou, com nostalgia, o verde
prado, lá no fundo do abismo, que dormia junto ao fugidio rio, que levava as
águas do passado, que se transformarão nas águas do futuro... E cansado da sua
angústia, da sua solidão, abriu uma última vez as asas, e num pequeno voo
lançou-se para o fundo do abismo, sentiu o ar bater nas suas sedosas penas,
sentiu a pressão do ar tentando resgatá-lo ao destino que parecia certo, e
fechou os olhos... Estava para breve o seu fim... Mas, mas uma vez não havia
chegado a sua hora, a sede de vingança não tinha sido aplacada, Raven tinha de
viver, e suas asas sentiram o doce toque do vento, desse vagabundo sussurrante,
que lhe dizia: “voa”, e Raven voou!
A
queda parara, sentia o seu corpo erguer-se para o azul dos céus... Abriu os
olhos, e diante de si, apenas a vastidão do horizonte, sentia-se livre, no seu
pensamento, da sua dor, da sua angústia.... Olhou para baixo e viu a terra que
lhe dera vida... Ainda soltava os fumos da morte, e mesmo distante dela, sentia
o cheiro a morte, a carne queimada, pelo fogo do inimigo... O inimigo! Quem
seria desconhecia, sentia uma raiva e uma necessidade de vingança, contra algo
ou alguém que desconhecia, bem podia ser invisível, bem que podia ser ele
mesmo, pois não o sabia, mas havia de o descobrir.
Mas
apesar de livre sentia a falta de algo, sentia o seu interior vazio, a sua alma
oca... Era certo que agora toda ela era sede de vingança. Desejo que encontrar
os responsáveis pelo destino do seu povo, queria vingar a morte daqueles que
amava. Mas sentia, que para além disso... Lá no fundo... nada mais existia...
Tudo o resto era nada... um enorme vazio que se estendia por toda a amplitude
que era o seu espírito. Como podia ser? Existira apenas ele para vingar o
sangue derramado? E depois disso? Morreria? Viveria? Se viver, seria mais um
ser sem sentido, um receptáculo vazio e oco, despejado de significado, que
viver seria esse? Que viver é este? Ahhh!! A dor da incerteza, a dor do
vazio!!! Como dói... Todos nós, em algo momento, sempre desejamos não sentir,
perder os sentimentos que nos impelem a fazer o que não queremos, mas e quando
os perdermos? Quando sentimos que nada existe? Ficamos confusos, perdidos nessa
confusão, procurando a solução... Mas não a conseguimos encontrar, porque não
nos conseguimos encontrar a nós próprios, e perdidos no deserto que somos,
vagueamos pelas dunas de um existir vazio, e apenas a areia que é o passado
encontramos, e ao longe vislumbramos a miragem que é o futuro, a miragem que
nunca chegara, e sedentos de vida, ressequidos de sentir, morreremos nas areias
dos presente...
Pela
primeira vez desde que renascerá sentia-se bem... Sentia o vento conduzindo-o
por rumos insondáveis, sentia o seu pensamento vazio, apenas a sensação de
liberdade que era voar lhe enchia o ser, toda a dor, toda a mágoa havia
passado... Brincava nos rumos do vento, desafiava as correntes de ar, era ele
agora que ria daquelas jocosas aves que se haviam divertido às expensas dele...
O Homem havia sido enterrado fundo no corvo, apenas o corvo agora estava vivo,
o Homem dormia... Com a sua dor, com a sua mágoa... Afinal a maldição havia
relevado ser uma recompensa, podia descansar da sua dor, que enquanto Homem,
não podia deixar de sentir, mas enquanto corvo era livre para se deixar
conduzir pelo vento, para ser ele a conduzir o seu rumo, e nessa contradição
aparente, viajar por destinos desconhecidos, procurar descobrir o mundo que se
estendia perante si...
Sempre
via o clã... o grupo como o seu mundo, nada mais exista para além dele...
Apenas nele encontrava a segurança, pensava iludido que ali estaria seguro e
nada nesta vida o poderia atingir nem a ninguém enquanto estivesse no clã! Era
o seu mundo... a sua vida... Ilusão! Mera ilusão... O destino havia de lhe
mostrar como estava enganado... que nunca podemos estar seguros de estar em
segurança. O que é a segurança? No fundo o que é? É sentir que nada nos pode
atingir, ou aos que amamos? É sentir que nada nos ameaça? Penso que sim... Que
é isso que todos nós pensamos, que todos nós procuramos... É por isso que nos
agrupamos em sociedades, em grupos, em comunidades.... Procuramos fugir às
agressões superiores às nossas forças individuais, e no grupo, na união de uma
comunidade de comunga de valores e ideias semelhantes, encontramos a
segurança.... Mas esquecemos algo que nunca devíamos descurar... Essa segurança
nunca é absoluta... Como tudo nesta vida... Essa segurança é relativa... Pois
desde logo, temos as agressões no seio da comunidades, perpetradas por
elementos dessa comunidade, e surge a necessidade da sociedade reprimir, punir
e reabilitar o indivíduo para a sociedade; mas por vezes o indivíduo perdeu a
comunhão de valores... Já não se enquadra... Sente que a sociedade o
marginalizou, que o explorou, e procura-se vingar dessa sociedade, e refugia-se
numa sociedade alternativa, cuja semente se aloja no coração da sociedade mãe,
e como um cancro a corrói, cresce e procura destruir o corpo que lhe dá vida...
Mas mesmo que, numa pequena sociedade, rudimentar, pouco organizada, como era o
clã dos Corvos, em que esse tipo de ameaça não pendia sobre a comunidade,
existe outro tipo de ameaças, exteriores à comunidade... Ameaças de forças
superior à união, que esmaga toda a oposição que se lhe depara. Eis a razão da
segurança ser relativa.... Vós quereis segurança absoluta? Então tende a
ousadia de morrer... Pois só a campa é um lugar seguro, pois enquanto vivemos
sangramos...
E
mesmo esta, mesmo a morte não oferece uma segurança absoluta! Interrogai Raven,
e vede a resposta por ele dada! Vende que pensava esse corvo negro que havia
encontrado o repouso eterno, mas por desditoso capricho dos Deuses, havia de
renascer... Segurança? Quereis Segurança absoluta? Eu dou-vos uma ilusão!
Apenas isso... nada mas do que isso vos poderei dar.... Procurais soluções a
quem as não tem... Procurais respostas, a quem só tem interrogações... Procurais
a verdade a quem apenas tem ilusões para vender! Todos procuram a verdade...
Todos querem saber a verdade... Já vos haveis perguntado se a verdade não
existe? Claro que tem de existir! Dizeis vós. Pois tendes de o fazer, não é?
Que sentido faria a vossa vida, toda ela dedica, a procurar a verdade, a tentar
descobrir o sentido da vida, e descobrir que ele não existe, que a vida não tem
sentido! Que é apenas um jogo de dados, lançados por uma mão misteriosa e
invisível, que guia o nosso destino de forma aleatória, e do qual nos não temos
controlo? Ou será que existe? Que sei eu? Como vos havia dito, não sei...
Eu
sou como o corvo cuja estória vos narro, sem sentir... apenas me deixo guiar
pelo impulso da minha pena, apenas vos conto os factos, as cogitações, os
receios, os sentimentos... Verdade?! Mentira!? Realidade ou Ficção, futuro ou
presente! Apenas a vós o cabe decidir... Eu apenas vos conto as palavras que me
fogem da minha imaginação febril... Fazeis delas o que quereis, e se quereis
que elas sejam reais, elas serão reais... Pelo menos para vós, e quem sabe...
Quem sabe, se um dia não acordeis e sentis que para além de serem reais no
vosso imaginários, elas soltaram amarras e zarparam rumo à realidade feita
ilusão, e a ilusão transforma-se em realidade; mas se quereis que elas sejam
ilusão, ilusão elas serão... e destas páginas elas não passaram... Mas da vossa
mente não saíram, e se repetirão até ao infinito, até as saberes de cor, e
quando pensares que as haveis esquecidas, eis que elas aparecerão diante de
vós, vestidas sobre a capa de uma realidade, que julgais impossível, e nesse
instante as reconhecereis como tal...
Louco....
Podereis dize-lo livremente, nada mais passam do que palavras de um louco;
admito que o sou, louco por pensar que faço sentido, louco por pensar que posso
sentir-vos, sentir o vosso sentimento a ler estas palavras... Talvez o seja,
como disse, não tenho certezas, apenas dúvidas... Mas do fundo da minha
insanidade, vos penso, lede estas páginas, mesmo que para no momento seguinte
as esqueceis mas lede a estória deste Raven, que de Homem foi feito corvo, e
olhai para o fundo, para o sentimento, porque as palavras nada são do que meros
símbolos sem o sentimento que se esconde por trás delas... E então depois,
podereis concluir, pela realidade ou ficção das palavras! Pela loucura ou
Insanidade dos seus escritor...
Mas
mais uma vez estamos a afastar-nos dos fitos do nosso conto.... Voltemos para
os verdejantes campos junto ao rio, para o azul do céu, onde voa aquele corvo
negro, e vejamos por onde anda esse místico ser, em que nuvem se esconde a sua
sombra, em que vento ecoa o seu falar....
Mas
vede que Corvo traiçoeiro, não o podemos deixar um pouco sozinho, que logo nos
procura fugir, pensado nós que o iríamos encontrar saboreando os cambiantes dos
ventos, e eis que ele se encontra descansado sobre um ramo de uma velha árvore
que descansa o peso dos seus anos junto ao ribeiro. Vede como é tranquilo o
sono dos justos, eis que ele dorme repousado, ignorando a noite que se aproxima,
tranquilo dorme, qual recém-nascido. E na realidade o que ele é se não um recém-nascido?
Acabado de nascer da morte, do sangue dos campos, em Homem se tornou, mas em
vida, nada mais do que horas têm...
De
facto, a noite chegava misteriosa como sempre, trazendo consigo a escuridão das
trevas, o frio gélido da noite, que se espalha sobre os campos verdejantes,
cobrindo com o seu manto negro toda a imensidão que se estendia pelo
horizonte... Mas para o nosso corvo era mais do que isso... Além da transformação,
da dança entre luz e escuridão, a mudança, a mutação que se opera nesse corvo é
muito mais profunda... E apesar de tal, não deixa de estar associada a esse
mesmo simbolismo. Pois tal como a escuridão da noite sucede à luz do dia,
também a noite, faz com que a alma no nosso corvo se enegreça, e aquela paz que
sentia quando voava, seja substituída, pela dor e pela mágoa das consciências
da perda dos seus entes queridos.
E
tal como as noites se sucedem aos dias, eternamente, incessantemente, também
esta mutação se operaria nesse corvo, tempo após tempo, dia após dia, noite
após noite, até aos fins dos tempos, até à morte... Se algum dia essa chegasse!
Facto de que agora duvidava... É difícil para alguém que morreu e renasceu das
cinzas da sua própria morte acreditar que algum dia morrerá... Deixa-se de
acreditar na morte, no descanso eterno, começa-se a sentir perdido na própria
dor... E acredita-se que todos os dias se morre, para à noite renascer, e a
cada noite que passa, a dor aumenta, e o desespero cresce, e pensa-se quando
isso acaba... quando... E a resposta surge como um eco perdido no nosso
interior: “nunca”...
O
pôr-do-sol nasceu e logo padeceu nas mãos da noite, fruto da cúpula fugaz entre
dia e noite, nascido do amor do sol e da lua, que por escassos momentos se
encontram, amantes afastados pelo feitiço do tempo, mal nasce logo falece, nos
braços de sua mãe... A noite estava instalada, e chorava a morte de seu
filho... Soltava doce lágrimas de dor, escondida atrás do seu manto negro... O
Corvo que dormia no ramo do velho carvalho havia desaparecido, no seu lugar, no
chão verde jazia agora um Homem, que acordava da letargia da sua mutação... Já
era a segunda vez que sentia este fenómeno, mas mesmo assim não poderia deixar
de se sentir supreso; pensara que talvez os destinos que o regem o deixassem
ser corvo para sempre, como o desejava agora, puder ser livre nas asas do
vento, e partir pela noite, escuro como ela, invisível sobre a capa da sua madrasta
que auxiliara a terra e os céus no seu parto... Como desejava... Mas não, tinha
de ser Homem e andar sobre a terra. O voo diurno havia retirando algum das suas
forças, estava cansado e com fome, tinha de procurar comida...
Junto
das árvores que bebiam o fresco néctar que rio lhes ofereciam recolheu velho
ramos que jaziam inertes e mortos sobre o tapete verdejante do prado, e com a
perícia ensinada pelo seu pai, furto de ensinamentos imemoriais, transmitidos
de geração em geração, criou luz e calor, e por momentos sentiu o calor
proveniente daquele brilho misterioso, que nascia da noite, invadir-lhe a alma
e reconfortar-lhe os pensamentos; mas mesmo assim ainda sentia fome... Teria de
caçar ou pescar, teria de matar para sobreviver... A esta hora seria difícil
encontrar caça alguma por aqueles prados, os poucos habitantes daquelas
paragens dormiam agora, seguros nos seus refúgios, sempre poderia tentar
descobri-los, mas mais depressa morreria de fome que ter sucesso em tal
empreendimento... Também poderia tentar a sua sorte e vaguear pelos campos,
certamente, um ou outro habitante teria descurado a chegada da noite, e iria
ainda a caminho do seu refúgio, mas sem instrumentos de caça adequados, seria
improvável alcançar o sucesso nessa perseguição... A única opção que lhe
parecia credível seria mergulhar os seus pés no rio e tentar acordar algum
peixe adormecido...
Tirou
a sua capa pesada e colocou-a sobre a relva húmida pelo orvalho nocturno, tirou
da bainha a sua espada e meteu-se dentro da água gelada, sentiu um arrepio de
frio percorrer-lhe o corpo e sentiu vontade de fugir dali... Mas a fome venceu,
e lá continuou a sua empreitada... Após as primeiras tentativas infrutíferas
pensou em desistir, e sentiu as forças abandonarem o seu corpo, pensou em
deixar-se levar pela corrente, e deixar que o gigantesco mar o acolhesse no seu
seio, mas algo no seu interior impelia-o a continuar, e com razão, pois haveria
de ter sucesso no seu empreendimento...
Com
o fruto da sua pescaria cozinhando ao lume da sua fogueira, sentiu o calor
secar-lhe as roupas, mas outro frio, algo mais gélido tomou-lhe de assalto a
alma. Sentia-se só, sem alguém com quem partilhar os seus pensamentos. Sentia
que era o único ser que habitava aquelas planícies, sentia a necessidade de
contacto com seres da sua espécie... Sentia a falta do clã... Das conversas em
redor das fogueiras... Do calor humano; das carícias da sua amada... Era isso
que mais sentia falta da sua vida anterior... De certo sentia falta dos seus
pais, dos seus amigos, mas essa falta era recompensada pelas recordações dos momentos
de felicidades vividos com eles, mas as saudades da sua amada, das suas
palavras, das suas doces carícias, nada poderia substituir, e cada recordação
dela, em vez de obviar a tal, parecia agravar o seu estado, e fazer com que
mergulhasse na mais profunda das melancolias....
O
Manto negro que cobria o céu parecia dissipar finalmente, já se consegui ver um
pouco do brilho do firmamento celestial, ao longe conseguia-se descobrir no
negro salpicado, um ou outro brilhante, que cintilava no longínquo firmamento.
E olhando esses brilhantes, Raven lembrava os olhos da sua amada, perdida para
sempre nas cinzas dos campos, onde tinha sido vertido o sangue daquela donzela
virtuosa, que com o seu canto de cisne encantara os seus ouvidos, com doces
melodias, e que agora recordava na angústia da saudade que o atormentava.
Como
é curioso... Julgamos que aquilo que amamos e aqueles de quem gostamos estarão
sempre ao nosso lado, aconteça o que acontecer, mas olvidamos que existem
acontecimentos que não controlamos e nem podemos controlar, e quando esses
mesmos nos levam essas pessoas, o nosso interior chora lágrimas de sangue por
eles... E a saudade agrava-se a cada dia que passa... A nossa dor aumenta, até
que se funde no nosso ser, e deixamos de separar o nosso sentir, da dor que nos
abraçou, e da saudade que nos embala o viver, e unidos num só, renascemos num
único e misterioso desígnio... E assim, mortos de sentimentos, vamos vivendo,
perdido nas ondas dessa saudade, naufragados na dor dessa perda... Eis como se sentia
Raven... Eis o que era Raven... Saudade... dor... Angústia... Amor... Paixão...
Vingança... E Morte...
Embrenhado
nos seus pensamentos, Raven olvidava as mudanças que se operavam na noite
escura, que já não o era mais, parecia que o dia rejuvenescia e que a noite
fugira, o dia parecia eterno, que estranho feitiço era este? No céu lá bem no
alto, brilhavam duas luas, bem cheias, redondas e belas, que com o seu halo
misterioso enfeitiçavam todos os seus súbditos que maravilhados, assistiam a
este espectáculo raro, um bailado que apenas se relevava em cada milénio, um
raro bailado entre as duas luas que escudavam aquele planeta, que nas suas
órbitas contrárias se encontravam ocasionalmente, proporcionado aos seus
observadores uma visão de rara beleza.
Mas
eis que aquela alma sofredora desperta da sua letargia, e erguendo os seus
olhos aos céus depara com aquele raro espectáculo. E a sua alma dorida e
magoada sento o seu coração encher-se de alegria... Como é maravilhoso ver um
ser que sofre e padece num momento, e perante um espectáculo oferecido pelos
Deuses, esquece a sua dor e a sua mágoa e se maravilha com a tal bailado...
Naquele
momento Raven sentiu-se privilegiado em poder assistir àquele bailado
celestial, uma misto de beleza e mistério fundidos num momento singular... Mas
logo a saudade o assaltou, e soltou suaves lágrimas de dor e paixão. Pensou
como a sua amada adoraria ter visto aquele espectáculo; relembrou as estórias
contadas à volta da fogueira, dos mais velhos, contadas de geração em geração,
passadas de pais para filhos, cada um com seu toque pessoal, dando-lhe um pouco
mais de mistério e mito. Um das versões mais correntes dizia, que as duas luas
seriam dois namorados, nascidos em clãs diferentes e rivais, que o destino quis
que se amassem e o seu amor fosse proibido. Contavam os anciãos do clã que em
tempos idos, perdidos nas brumas da memória, onde havia sido o lar dos Corvos
até à sua destruição, muito antes do clã se ter ali estabelecido, habitava nas
duas margens do rio dois clãs diferentes, apenas divididos geograficamente pelo
rio, separava-os centenários de rivalidade; mas por desditoso capricho do
destino havia querer que duas jovens almas se apaixonassem e vivessem
intensamente o seu amor proibido. Escondidos pelas sombras jurariam amor
eterno, pelas estrelas que os banhavam prometeram que mais depressa se
tornariam poeira levada pelo vento que amar, e serem tomados por outra pessoa.
Conta a lenda que certo dia, que encontrando-se estas pobres almas em idade de
casar, seus pais anunciam ao clã os respectivos casamentos. Os jovens perdidos
na dor da separação, em lembrados da promessa que haviam feito um ao outro,
lançam-se às águas do rio, que por capricho do destino as suas águas nessa
noite levavam selvagens, correndo indomáveis para o mar, ambos afundaram-se num
sono eterno abraçados numa paixão eterna. Nessa noite a lua desapareceu e no
seu lugar apenas um halo negro subsistia.
Conta
ainda a lenda, que uma raio de fúria desceu dos céus e fulminou os dois clãs
despedaçando as duas comunidades por tão ignóbil traição e no local onde
antigamente habitavam duas comunidades florescentes, apenas o vazio reinava.
Contam ainda os anciãos que nessa noite duas luzes saíram das profundas águas
do rio e se elevaram rumo aos céus, e no local onde antes jazia um halo negro,
deixado pela partida da lua, erguiam-se duas luas cheias, que bailaram toda a
noite até ao raiar do sol... Diziam os contos que foram as almas daqueles
amantes que se juntaram, e de mil em mil anos se juntavam novamente para aquele
bailado, e assim foram as luas baptizadas de Calipso e de Efreneida, os nomes
daqueles dois apaixonados, que pelo seu amor morreram, e que por esse mesmo
amor se ergueram aos céus, e no firmamento astros se tornaram, espalhando a luz
da sua paixão sobre todos os habitantes deste mundo...
Cada
vez que relembra a estória, ouvida pela primeira vez da boca de seu avó, as
lágrimas correm-lhe fugidias pelas faces marcadas pela dor, da recordação dos
momentos que passara com ele... Ainda lembra aqueles fins de tarde ao por do
sol, em que sentava nos seus joelhos, quanto infante era, e via as aves passar
em voos sucessivos sobre o rio procurando caçar algum peixe distraído que se
aventura-se na superfície espelhar do rio, procurando o alimento para as bocas
famintas que esperavam ansiosas por um pedaço de comida que saciasse a sua
voracidade... Relembrava em vagas sucessivas, as imagens velejantes que
partiram para rumo incerto, e de novo a mágoa e a dor instalam-se no seu
coração... Lágrimas correm num rio sem represas, rumo ao chão banhado pelo
sangue das vidas perdidas em lutas efémeras e sem sentido...
Recordações...
Pedaços de um viver vivido que guardamos no baú das memórias, para mais ninguém
têm valor a não ser para nós, e mesmo que comungadas por diversas pessoas,
mesmo assim não terão o mesmo valor para todos os membros, cada um lhe
atribuirá uma importância própria e singular, fruto da vivência singular de
cada um. É esse cunho pessoal que torna cada ser irrepetível, cada ser que
nasce, cada vida que se perde, é única e singular, impossível de ser copiada. A
substância poderá ser igual, semelhante, em tudo idêntica, mas o seu espírito,
a sua alma, a sua personalidade, nunca poderá ser igual, pois cada aspecto,
cada modo de ser, cada resposta a estímulos que a realidade nos dá, depende da
vivência de cada um, da experiência do saber feito, de cada minuto, segundo, ou
instante vivido por cada um....
Vende
este jovem a que chamamos Raven, quando morreu era um jovem singelo, inocente,
desconhecia a dor e mágoa a que podia um ser sujeitar-se, e quando renasceu,
apesar do corpo ser o mesmo, em tudo igual, pois renascera das cinzas tal como
morrera; no entanto, a sua alma havia-se modificado, algo mudará. A inocência
que em tempos idos bailava nos seus olhos, dera lugar ao vermelho da
vingança... O corpo podia ser o mesmo, até as recordações eram iguais, mas o
Raven de agora não era, certamente o Raven dos tempos idos... Aquele Raven que
defendia a paz, que repugnava o uso das armas a não ser para caçar, que
procurava a justiça das soluções, que usava da palavra para dirimir os
diferendos, dera lugar ao Raven sedento de sangue, ao senhor da guerra, que
desfere o golpe primeiro e só depois pergunta se estava inocente ou culpado...
Mas
alheios aquele dor, aquela mágoa, aquele ser, os astros continuavam a sua
misteriosa dança, maravilhando os campos com a sua luz celestial, fazendo da
noite dia, parecendo querer descer sobre o rio para saciar a sede resultante
daquele bailado milenar e místico. Como que parecendo confirmar a lenda,
pareciam dois amantes, saudosos, separado pelo peso dos séculos, bailam pela
noite fora, sucedendo-se numa dança misteriosa e única, que maravilha todos
quanto a observam; apenas Raven estava noutro mundo, num mundo de mágoa e dor, no
qual os sentimentos de felicidade eram desconhecidos, apenas recordações de um
passado distante, mais pareciam ilusões que nunca foram vividas, mas apenas
gravadas no cérebro, tudo pareciam vazio, sem sentimento, parecia distante, que
não pertencia a ele, sentia que aquelas recordações já não eram suas, e cada
mais tempo que vivia, mais sentia a distancia entre o presente e o seu passado.
As recordações que ainda de manhã o assaltavam, pareciam mais distantes, e
pertencentes a outro ser que não a ele, sentia que nada lhe diziam respeito,
nem mesmo as recordações acabadas de sentir, de sua amada, do seu avó, pareciam
já ser dele... Que estranha mutação se operou numa lapso de um instante? Que
Estranho sentimento era este que o invadia... Cada vez mais se sentia vazio...
Cada vez mais sentia a sede de vingança, em pouco tempo pouco mais sentiria, o
seu passado anterior, seria apenas uma mancha negra, uma vazio eterno... Para
Raven apenas a dor, a mágoa e a sede de vingança existiam, a partir de agora
apenas sabia que tinha de vingar os Corvos, não sabia o porquê dessa
necessidade, apenas sentia o instinto animal que o levava nessa busca... Apenas
sentia a sede de sangue... De sangue dos seus inimigos... Mas não sabia quem
eles eram... Mas sentia a necessidade de os procurar... De os destruir... O seu
interior clamava por vingança, o seu coração tinha sede de sangue... E ele que
apenas queria descansar em paz, tinha de continuar esse caminho tortuoso, que
só levava à destruição... à destruição dos seus inimigos, dos seus amigos, e de
si próprio....
Mas
por mais forte que seja a dor nunca conseguirá vencer o cansaço, este acaba
sempre por vencer, e fatigado pelo esforço desse dia, e pela torrente de
emoções que sentiu e que viveu nas poucas horas de vida, adormeceu ao calor da
fogueira, depois do seu repasto, e dormiu um sono reparador... Mal deu conta do
bailado que continuava a desenrolar-se sobre a sua cabeça, e que a noite
passava e que o dia não tardava em acordar...
Mas
o tempo não perdoa, esse traidor que está sempre pronto a denunciar-nos, esse
delapidador das alegrias, esse esconjuro da tristeza, e o dia chegou, e mais
uma vez o Homem corvo volto a ser. Á medida que as transformações se operavam
sucessivamente, o jovem guerreiro ia-se habituando a tal facto, começava a
sentir que era natural, algo de inevitável. Quão verdadeiro era esse
pensamento, pois de facto, apesar de desconhecido de nós, seres limitados pelos
nossos conhecimentos, pelo imaginário comum, ignoramos as mutações e
transformações que a natureza pode operar, os mistério que ela encerra.... Acto
anormal, fruto do fantástico, facto sobrenatural direis! Falso! Replicarei
eu...!!! Nada de mais falso que afirmar tal.... Seja fruto do desígnio dos
deuses, seja fruto da vontade da natureza... Tal transformação é uma facto
natural, apenas se encontra para além da nossa compreensão, entender como tal
mutação se opera... Pela simples razão de a nossa compreensão ser limitada, não
podemos dizer que um determinado facto é sobrenatural, quando ele não o é...
Atribuindo-lhe origem divina ou não, apenas servirá para explica-lo face aos
nossos limitados paradigmas, mas tal nunca significará que o facto seja
sobrenatural, um desvio à natureza... Nunca....
Operada
a transformação, o renovado corvo abre as suas plumas negras e parte em
direcção ao sol acabado de acordar, ofuscando com a negritude das suas asas o
brilhar daquele astro, projectando sobre o solo verdejante a sua sombra,
atemorizando os pequenos habitantes das planícies, espalhando o pânico sobre o
caminhante mais distraído, que entrara naquele vale de morte, onde pairava
ainda o cheiro do sangue derramado pelas lâminas sedentas de ceifar as vidas, o
odor fétido a morte penetrava como navalhas afiadas ferido as sensíveis narinas
daqueles que ousavam penetram no interior daquele vale destruído. O solo ainda
exaltava o ar quente das almas queimadas naquele palco de morte, e aquele corvo
pairando no ar, sedento do sangue dos seus inimigos, pairando, esperando...
Esperando por quem cuja identidade desconhecia, esperava um indício, um mero
sinal que lhe indicasse que aquele era o objecto da sua ira, e que sobre ele
poderia recair toda a sua vingança, toda a sua dor e mágoa...
Mas
o tempo passava, e nem o mais pequeno dos seres se atrevia a penetrar no seio
daquele vale, vendo o vigilante das almas vageantes, que pairavam invisíveis
sobre as pedras manchadas do seu sangue, ansiando pela vingança, esperando o
dia em que a sua dor fosse realizada na morte dos seus agressores, e assim
poderem partirem para a viagem eterna rumo ao descanso infinito... Raven esperava, sentido o vento nas suas
asas, sentido um pouco da liberdade que lhe é concedida, esperando que o dia
nunca acabe e a noite nunca chegue, ou que algum sinal lhe seja relevado... Mas
os tempo não para, e a noite chega novamente, e os sinais que o levem rumo ao
seu destino escasseiam e rareiam...
A
noite chega furtiva e leda, com o seu misterioso encanto, os dois amantes que
bailaram na noite anterior, continuavam os seus caminhos separados, despedindo-se
em gestos mútuos de saudade, cada vez menos brilhantes, diminuindo o rubor da
noite passada, começando a esconder as suas faces atrás do manto negro da
noite. Todos os habitantes do vale, que ainda ousavam passear por aquelas
terras, há muito haviam regressado aos seus refúgios, procurando fugir aos
perigos da noite, apenas os mais distraídos ou os mais corajosos ousavam
expor-se à face negra da noite...
Na
orvalhada relva jazia imóvel o corpo de Raven, fatigado por mais uma mutação
recuperava forças, enquanto pensava que a sua continuação naquele local seria
inútil... Nada mais havia ali a fazer, deveria partir, explorar o mundo, seguir
o rumo daqueles que haviam destruído a sua vida e o haviam transformado no que
era agora... Mas que rumo seguir? Seguir pelo curso do rio até à sua nascente,
de onde tinha visto nascerem as hordes inimigas que devastaram e desbarataram a
vida aos membros do seu clã? O mais certo seria encontrar outros povos, que
estando inocentes, sentiriam o peso da sua ira, pois cego de raiva não
conseguiria discernir a sua inocência, o mais provável seria fazer cair a sua
ira sobre o primeiro povo que encontra-se, inocente ou culpado...
Deveria
seguir o rumo do rio até à sua foz? Poderia correr o mesmo risco que subindo
até à nascente... Mas pensando melhor... Esse risco poderia não existir
verdadeiramente, pois não era verdade que esse povo que havia destruído o seu
clã era sanguinário? O mais provável era encontrar um rasto de destruição
semeado por esse mesmo clã! E assim poderia ter a sorte do destino e conseguir
alcançar aqueles por quem ansiava... Já podia sentir o sangue deles correr pelo
gume do seus sabre, já sentia o cheiro das suas vidas esvaindo-se, ouvia no seu
imaginário os gritos de clemência daquelas almas condenadas... Tal como ouvira
os gritos dos seus entes queridos, e tal como eles haviam feito, assim ele iria
fazer... sem perdão, a morte!!!
Condenados
estavam de factos essas almas errantes, que por onde passavam semeavam a morte
e a destruição, esse povo guerreiro, que tinha na sua génese a semente do
mal... E sem clemência ou perdão, aplicavam a pena de morte a todos aqueles que
se deparavam no seu caminho, qual fosse a cor, o credo ou a raça... O seu
destino era único: a morte! Mas a partir do momento em que Raven nasceu a sua
sentença estava assinada, o juiz supremo havia reunido em concílio, e havia
decidido: tinham de morrer! Quem pelo ferro vive, pelo ferro deve morrer! E
nasceu Raven, o carrasco dos Deuses, o anjo vingador, cuja missão era apenas
uma: matar.
Mas
mesmo Deuses esquecem que o destino é supremo e que mesmo esse jovem rebelde
lhes escapa ao controlo sempre que o entenda, e nem desconfiavam o que este
lhes preparava... Haviam criado Raven apenas como instrumento das suas
vontades, e esperavam que termina a sua tarefa, finda a sua missão, o teriam de
volta aos seus desígnios, como iludidos estavam, ao darem-lhe vida, haviam-no
perdido para sempre, pois uma força mais poderosa que eles próprios o havia de
resgatar ao seu fatídico destino...
Se
até o destino foge ao controlo dos Deuses, como podemos ambicionar nós, meros
mortais, controlar o nosso fado? Não podemos... Julgamos que o controlamos, mas
apenas vivemos uma ilusão... Todos os dias acordamos e pensamos: somos donos do
nosso destino. Mas pergunto-vos: sois vós verdadeiramente donos dos rumos das
vossas vidas? Quantas vezes não haveis vós estado confusos sobre a vossa
situação? Quantas vezes não haveis vós sentido impotentes para travar o rumo
dos acontecimentos, que vos engoliam, e vos devoravam, e vós impotentes para
lhe resistir? Então como podeis algum dia afirmar que sois donos do vosso fado?
Pois quando menos esperares esse jovem irrequieto se revoltara contra vós, e
vos derrubara...
Mas
regressando para junto do nosso jovem torturado, esquecendo as cogitações em
que este narrador tende a perder-se, e pelas quais peço, desde já, o mais
humilde perdão, pois é mais forte o sentimento de vos dizer o que vai na alma e
dispersar por vale e atalhos esquecidos do pensamento. Peço que me perdoeis
essa indiscrição... Mas voltando ao fito que vos traz a ler estas palavras...
Raven
havia tomado a resolução... na manhã seguinte, enquanto corvo partiria rumo à
foz do rio, pela primeira vez iria sentir o sabor do mar, e o cheiro salgado
das lágrimas das noivas dos marinheiros perdidos para os braços do mar... De
dia velejaria pelas ondas do vento, invadido pelo sentimento de liberdade que o
enchia quando voava livre pelas correntes de ar que o elevava; e de noite
descansaria, caçaria o alimento que lhe permitiria sobreviver às agruras das
constantes mutações, e ao desgaste da viagem... Estava decidido, partiria ao
primeiro ao primeiro raiar do sol, assim que fosse novamente corvo...
A manhã chegou radiante. No ar dormia
uma ligeira neblina, que enrolada na suave brisa que se fazia sentir, brincava
com os ramos das árvores que se espreguiçavam ao sol acabado de nascer. Raven
acordava, desta vez como corvo, já nem havia sentido a transformação que se
havia operado, já não sentia o cansaço dessa mutação... Também já não lutava
contra ela, agora auxiliava e colaborava nessa luta interior, que se abria a
cada nascer e pôr-do-sol...
Sorveu o ar matinal, e olhou os
primeiros raios acabados de nascer, o dia estava radiante, ergue os olhos para
o céu, abriu as asas, e elevou-se em direcção ao azul eterno, e partiu...
No céu irrompe pelo
azul celeste uma negra sombra, fria como a noite, invisível como o orvalho que
cai imperceptível nos braços da verde vegetação que se aninha nos solos
desertos. Raven voava, inebriado nos seus pensamentos procurava o sentido do
seu fado, perdido na angústia de uma passado que se impunha com toda a força de
um sentimento de vingança... Como clamando pelo sangue dos seus inimigos...
Havia decidido seguir o curso do rio e perder-se nos seus caminhos, seria livre
mas sempre aprisionado a um destino... Pobre corvo solitário que cruza dos céus
azuis... Tal como as suas penas negra é a sua alma, escura é a sua
existência... Ah! Quem o visse livre a voar no céu, com o seu porte imponente,
ousaria ser livre como ele, mas poucos adivinhariam como aprisionado se
encontrava a sua alma, como preso se sentia aquele ser... As correntes da
vingança prendiam-no ao passado de dor e tristeza, as grilhetas dos gritos dos
seus entes queridos ecoavam no seu cérebro entoando dia após dia, hora após
hora, clamando, gritando por vingança, atormentando, pressionando, aniquilando
a pura essência de um ser puro e bondoso por nascença, empurrando-o para o
abismo da solidão, da mágoa e da dor...
Curiosos planos nos
tecem os Deuses, moldam e brincam com as nossas vidas como barro que se molda,
se parte e se torna a moldar, criando à sua vontade os caminhos porque se rege
o nosso fados, mas há caminhos e destinos que até eles fogem ao controlo dos
Deuses... Raven, o corvo sanguinário, nascido do concubinato entre céu e terra,
irmão do trovão, primo do vento, brinquedo dos Deuses...! Nada mais seria do
que um mero brinquedo, não fora esse rebelde que se esconde nos sítios mais
fundos, mais imprevisíveis, esse sentimento mágico e nobre que nem os Deuses
controlam... Seria o filho rebelde de Adónis e Afrodite que se intrometeria no
jogo e mudaria as regras... Quando pensamos que estamos perdidos no labirinto
de nossas vidas, perdidos no escuro, haverá sempre uma ténue luz que nos guiará
e nos ajudará a encontrar o caminho.... Nunca olvidais que essa luz existe,
pudemos passar uma vida sem a ver, mas quando precisamos dela, eis que ela
surge vinda do nada... O que fazemos diante dela caberá a cada um de nós
decidir! Mas atentai as palavras deste louco que vos conta esta alucinada
estória fruto da sua febril imaginação, ouvi as palavras desta insana pena,
pensai bem antes de decidir, pois o vosso futuro e toda a vossa vida dependerá
da vossa escolha...! Há quem abrace essa luz com toda a sua alma e se queime na
chama do seu ardor, mas mesmo assim sobreviva à dor e seja infinitamente feliz;
outros há que de mais moderados serem preferem ser mais cautelosos, mas esse no
entanto nunca conheceram todo o esplendor dessa luz; por fim outros ainda há,
que pura e simplesmente ignoram-na e vivem as suas vidas na total escuridão...
De certo já haveis
descoberto que vos falo de Cupido, filho de Afrodite e de Adónis, jovem
arqueiro rebelde, que enfeitiça os enamorados, esse jovem por cuja culpa foram
travadas batalhas milenares pelo amor...! O que se não faz por esse
sentimento...? Dizei-me...? Já alguma vez estiveis apaixonados...? Se sim...
Sabeis do que falho, em caso contrário, muito me pesa a vossa perda de não
sentir essa luz que nos guia pela escuridão das nossas vidas até ao brilhar do
nosso contentamento. Louco é quem diz que viveu e não amou, pois amar é viver,
quem assim passou pela vida, não viveu na realidade, apenas existiu, a sua vida
foi apenas uma vazio sem sentido...
Mas voltemos para
junto do nosso solitário corvo, antes que nos percamos nas asas da divagação e
nos afundemos nas brumas das dúvidas que esta pena apressada deixa escapar...
Percorrendo os ventos invisíveis das verdejantes planícies, vamos encontrar o jovem
corvo junta a uma árvore, descansando a suas pobres e cansadas penas.
Quando descansava
junto à água fresca reconhece um vulto distante... Algo familiar... Mas mesmo
assim estranho... Estaria alucinado? Será que a sua mente teria atingido o
limiar da sanidade...!!? Julgava ter visto um membro da tribo dos Corvos, os
sinais pareciam assim indicar...!! Mas a tribo tinha sido dizimada... Ou não
teria sido? Ou seria um outro povo cujos sinais seriam similares? Seriam estes
os inimigos do seu povo? Ou seria apenas uma ilusão provocada pelo cansaço e
pela sede de vingança... Uma miragem provocada pela ansiedade de encontrar os
responsáveis pela destruição do seu povo...!? Não o sabia. Apenas sabia que
tinha de descobrir a verdade! Se fosse outro povo teria de ter cuidado, pois
poderia ser o povo que destruíra o seu, e indubitavelmente ao vê-lo
reconheceriam o povo que haviam dizimado em tempos passados e certamente não o
deixariam descansar... Deveria então ser
discreto e procurar ter cuidado nas suas observações... Mas...? Onde se
escondeu aquele misterioso ser? Distraíra-se momentaneamente nos seus
pensamentos e logo aquele ser desaparecera. Agora tinha de encontrar o seu
rasto, segui-lo e esperar que os Deuses o Guiassem no caminho correcto... Raven
tinha a sensação de que ali se encontrava a solução para o mistério da sua
alma, e a concretização do seu destino... Seria assim de facto? Ou seria apenas
mais um actor neste palco da vida? Em breve Raven o descobriria...
Raven apesar de ser
filho do chefe da tribo dos Corvos ainda era muito novo e olvidava muito da
estória do seu povo. A tribo não era mais do que uma grande família que estava
junta para fazer face a necessidades comuns, cujos indivíduos isoladamente
dificilmente poderiam fazer face. Mas como todas as famílias, também esta tinha
segredos, segredos escondidos no baú das recordações... Memórias dolorosas, que
por causarem dor eram deixadas como esquecidas no fundo da memória... Mas como
todas essas memórias elas regressam quando menos esperamos... E o que Raven
tinha presenciado iria leva-lo a uma viagem ao passado... Esse passado que fora
escondido das novas gerações... Mas eis que ele volta e mostra-se quando menos
é esperando... Mas Raven não poderia adivinhar essa parte do passado da sua
tribo...! Como poderia?? Ele ignorava esse passado, pois sempre fora ocultado
de sai e da sua geração.... Esperando assim enterrar esse passado nas águas do
esquecimento, afoga-lo nas brumas do tempo e esperar que ele não
sobrevivesse... Mas ele resistiu, e hei-lo que se prepara para se revelar
diante o jovem corvo, e este, jovem ingénuo, não adivinhava o que estava para
advir... Mas em breve iria descobrir toda a verdade, e todo o mistério seria
revelado... Por agora encontrava-se longe de o compreender e de o conhecer...
Perdido nas conjunturas erróneas, longe do que era a realidade...!
Realidade ou
ficção? O que será a vida se não um conto narrado na primeira pessoa? Todos nós
julgamos ser donos da verdade, a nossa verdade! A nossa realidade! Nada mais é
real, nada mais é verdadeiro, senão aquilo que nos concebemos como tal...! Mas
em tudo aquilo que julgamos ser o nosso mundo apenas apreendemos uma parcela
desse mundo. Todos os dias procuramos a verdade da vida... Qual o seu
sentido... Quantas vidas desperdiçadas em busca do sentido da vida. Qual será o
sentido da existência? Qual a razão de algo existir? Eis as perguntas que
ocupam aqueles que procuram o sentido do existir. Mas no fundo o que isso
importa? Que importa saber que sentido tem a vida? Que valor tem desperdiçar
uma vida em busca do seu sentido e quando o descobrimos somos seres amargurados
por termos desperdiçado essa mesma vida...? Que valor têm estas interrogações?
Algo existe porque simplesmente existe, não é necessário existir razão
justificativa...
Será que vossas vidas se tornaram
vazias sem essa razão? Talvez... e se assim é malgrado a vossa sorte, pois a
vossa vida não terá valor acrescido algum, será apenas um vácuo de existência,
um receptáculo vazio de sentido, e no fim ireis concluir que sois inexistentes,
e porquê? Porque haveis desperdiçado a vossa vida em busca do sentido da vida,
quando ele estava no vosso seio. O sentido da vida é a busca da felicidade por
cada ser vivo, e fazer do mundo que o rodeia o seu lar, e deste modo aceita-lo e
respeita-lo...! Pois sendo infelizes sois inexistentes, sois um mero
receptáculo vazio, uma forma sem conteúdo! E sendo infelizes espalhareis a
semente da infelicidade em vosso redor... E jamais conseguireis integrar o
mundo que vos rodeia...
Não julgais que com minhas palavras vos
convencem...! Longe do meu intento tal! Apenas vos advirto da falácia que é
procurar o sentido da vida, que não na felicidade do Ego! Mas tende Cuidado!
Pois a felicidade não pode ficar aprisionada na essência da pessoa, tendes de
deixá-la transpor as fronteiras do vosso ser e contagiar os vossos
interlocutores, porque uma felicidade contida no eu, é uma felicidade falsa e
limitada, oca e desprovida de verdadeiro significado, a essência da felicidade
é a sua partilha...
Reparai no nosso personagem – Raven –
mero instrumento nas mãos dos deuses. Será que vive? Diremos que respira e
consequentemente vive. Mas é feliz? Direis que não. Pois quem pode ser feliz
com toda aquela mágoa e sede de vingança contidas no seio do seu coração?
Ninguém...! Então deixai-me perguntar-vos que sentido tem uma vida assim?
Reflecti... Que Valor tem assim viver..? Dir-vos-ei que nenhum...!
Viver...! Morrer..! Conceitos humanos
que nos limitam a visão da realidade, ofuscados pelas nossas barreiras... O que
é a vida? E a morte? São um mero momento...! Um instante que passou e depois já
nada mais é...! Somos um momento vivido na felicidade ou desperdiçado na
mágoa..! Não parai para chorar, senti o sabor amargo das vossas lágrimas e
bebei o doce néctar do riso de um inocente criança; vede como ela é feliz... Só
se sente triste quando lhe falta o amor e o carinho que lhe acalente o
coração... E será que não seremos nós eternas crianças?... Quantas vezes não
nos escondemos no escuro chorando pelos tempos perdidos da inocência? Tempos em
que éramos felizes? Mas será que alguma coisa mudou verdadeiramente desde
então? Ou fomos apenas nós que mudamos? Instigados por uma cultura que nos
obriga a ser infelizes porque também ela o é... Mas quem disse que havia de ser
assim...?
Mas voltando ao nosso personagem,
encontramo-lo a rasgar as planícies azuis do celeste firmamento, procurando
aquela curiosa figura que se havia intrometido no seu caminho. Quem seria?
Parecia um dos do Povo dos Corvos, mas no entanto era diferente... Seria uma
mera ilusão? Uma imagem perdida no cérebro de Raven, revelada pelo turbilhão de
emoções que o absorvia e clamava por ele, arrastando-o para campos cada vez
mais profundos do seu existir. Seria real? Seria que alguém da sua tribo havia
sobrevivido? Mas ele conhecia todos os membros da sua tribo, e aquele não
conhecia.
As ideias surgiam confusas e
distorcidas, mil e uma suposições invadiam a sua mente e apenas uma certeza se
impunha a todas as dúvidas que o assaltavam: havia que encontrar essa
personagem misteriosa... Custasse o que custasse....
E rasgando os azul dos céus, tingindo-o
de negro com suas volumosas asas cobriu toda a planície, procurando....
Procurando um vulto, uma sombra... Mas apenas o vazio do silêncio encontrava a
cada instante... Lá em baixo parecia que a vida tinha parado; mesmo nos céus
ela parecia inexistir. A sua sombra imperiosa imponha-se sobre o solo fustigado
pela erosão dos elementos, tudo o demais escondia-se da sua presença...
Todo o dia percorreu incessantemente os
céus procurando um lampejo daquela sombra que havia encontrado num breve
momento e depois havia perdido... Nem um
semblante de vida havia encontrado. A noite adivinhava-se, havia que descansar,
o crepúsculo alaranjado crescia no horizonte, impondo a sua presença, arauto da
noite chegava ledamente cobrindo de tons laranja fogo o que antes fora verde ou
castanho...
Raven entrou na floresta, procurava um
local onde pudesse descansar, seu corpo estava exausto, sua mente fustigada,
mas aquela sede de vingança, aquela necessidade de encontrar a sombra do seu
povo, ardia, queimava as suas entranhas, todo o seu ser era queimado por aquela
sede, por aquela dor que o assolava e consumia a cada momento, a cada instante
da sua vida, ela lá estava, sem piedade lembrando-o que o havia criado e que o
podia destruir.
Encontrou uma clareira, parecia um bom sítio
para repousar por instantes, para recuperar o fôlego, para depois partir em
busca de alimento. A noite chegou calma e lenda, imperceptível, e a metamorfose
sucedeu novamente o que era corvo em homem se tornou, fatigado, perdido nas
ilusões de uma mente mergulhada num turbilhão de recordações fugidias, e aquela
sensação de constante perda, Raven jazia junta a um velho carvalho.
A lua regia a negritude da noite,
envolvendo toda a vida com o seu manto negro. Toda a vida parecia adormecida na
neblina que pairava sobre as folhas da vegetação, mas por entre as brumas
disfarçadas de noites uma sombra movia-se, silenciosa como o vento passava
disfarçada pelas sombras da noite. Um lobo que vogava ao ar da noite como uma
alma perdida nas asas da perdição, lançando-se nas trevas procurando o fim da
sua maldição.
Uma sombra contempla outra sombra. Um
lobo olhando um corvo feito homem, e naquele instante que da eternidade se fez
um instante, o mundo passou despercebido entre as sombras que se olhavam,
receando-se... Que faria o Lobo? Pensava Raven. Atacaria? Quase podia ver um
brilho humano nos seus olhos, como se quisesse comunicar com ele... Quase
parecia que aquele lobo teria alma humana. Seria possível?
O que sabemos nós realmente do que nos
rodeia? Apenas o que é apreendido pelos nossos sentidos, e quantas vezes estes
não nos levam a perseguir loucas ilusões. A nossa percepção da passa disso
mesmo, de nossa, condicionada pelos nossos limites, pelas nossas limitações,
adulterada pelos nossos conhecimentos e suposições. Não era Raven também um
corvo de dia com alma de homem? Quem poderia garantir que seria o único. A
dúvida permanecia na mente de Raven... Mas em breve acabaria a dúvida e da
certeza nasceria a cura da doença que consumia esse corvo errante... Mal podia
esse corvo imaginar o que o futuro lhe reservava, tal longe do seu destino...
E um uivo longe e tenebroso ecoa pela
floresta rompendo os ramos dos carvalhos adormecidos, gelando o sangue de
Raven, um uivo longo e próximo, e no entanto tão distante, perdido na agonia de
um ser, esquecido na dor que quem não consegue amar, de quem se sente perdido
num mundo que não é o seu, numa realidade que não compreende, preso nos
desígnios de um universo que o prende à malha da roda da vida, e o arrasta sem
dó nem piedade... Um uivo sonoro que irrompeu do fundo da alma daquele lobo,
que uivando partiu como chorando não poder amar... Mas aquele olhar ficou...
Aquele brilho humano nos seus olhos ardia na mente de Raven.
Sentiu a tentação de seguir aquele
lobo, ele parecia esperar por Raven, quereria que o seguisse? Quem o mandara e
que procurava? Não sabia... Não podia responder... E partiu em busca das
respostas...
Sombras no céu, dançando no firmamento,
correndo rapidamente pelas trevas, procurando ofuscar o brilho das luzes do
universo. Mas a mais negra delas avançava sem olhar ao seu destino em direcção
a um destino incerto tendo como guia um lobo desconhecido. Estranha guia
esta... Mal sabia Raven que sentia o seu coração negro, que ouvia os seus
pensamentos ecoando na mente como se ele os tivesse falado... Mal sabia o que
aquele lobo lhe reservava...
Após várias minutos de caminhada
alcançaram o seu destino um homem deitado no solo frio da floresta aninhado num
cobertor velho e usado, roído pelas traças do tempo, cheirando ao bolor da
antiguidade... Raven olha incrédulo para aquele ser... Era a sombra que ele
perseguira toda a tarde... Mas como? Como poderia aquele lobo o ter ajudado?
Porquê? Como poderia ele alguma vez sabido o que Raven procurava...? Estranhos
desígnios os dos Deuses... Tão depressa nos escondem a fortuna como nos relevam
os seus segredos... Estranho jogo este que jogavam com Raven... Finalmente Havia
encontrado o alvo das suas buscas, esquecera a fome, a sede e o cansaço, agora
só tinha novamente um fito na sua mente... Saber o rumo do objecto da sua
vingança... O Rumo dos Coiotes.
Se Raven não estivesse cego pelo
vermelho da vingança, se tivesse olhado para os olhos do lobo seu guia, veria
que estes, como lendo a sua mente, olhando nos olhos de Raven, se
entristeceram... E como que chorando soltou um uivo de tristeza e pena por
aquela alma perdida. Havia lutado por lhe indicar o caminho, por lhe mostrar,
no seu desânimo, que havia mais neste mundo que a tristeza e mágoa que lhe eram
raízes, que nesse mundo negro, existe uma luz chamada felicidade, que nos banha
e nos guia, desde que nos abramos a ela e nos deixemos guiar pelo seu condão.
Impaciente por novas notícias, mal
esperou e acordou aquele ser que dormitava no chão frio da floresta, que com
ele dormia... Atordoado pelo susto de ter sido acordado por uma imagem negra e
por um lobo levanta-se num salto, colocando-se numa posição defensiva, pronta a
defender-se de qualquer potencial agressor, mas logo os contornos da sua face
descontraíram, reconheceu Raven, filhos de Osgrod, o chefe da sua tribo.
Pyros, assim se chamava aquela alma,
era um membro da tribo de Raven e tinha escapado ao ataque dos coiotes. Contou
que havia saído em expedição e quando voltava viu colunas negras saindo do
local onde estaria o acampamento, no entanto chegado ao local, apenas restavam
as cinzas do que fora a sua família, a sua mulher, os seus filhos, a sua
tribo... Com a alma perdida partiu sem rumo procurando esquecer a dor e a mágoa
que invadiam o seu coração... Procurando sem sucesso esquecer o que não podia
ser esquecido...
Pyros apressou-se a acordar o fogo que
dormitava nas brasas, e este insultado por o terem desperto rebentou na sua
fúria brindando-os com o brilho do seu calor. Os dois homens ficaram sentados
junto à fogueira conversando. Raven contado a sua negra sorte e do curioso modo
como havia encontrado Pyros... Conduzido por aquele lobo com olhos humanos,
aqueles olhos que lhe queimavam a memória, pairando infinitamente, como
clamando por algo que Raven não poderia compreender...
Então Pyros contou-lhe a lenda de
Moonwoolf. Em tempos idos, vivia uma bela donzela nas florestas negras onde
agora os dois homens falavam, a sua voz trinava pelos ramos dos carvalhos
fazendo inveja ao mais canoro dos rouxinóis, os seus olhos dois sois iluminando
a vida, a sua beleza divina ofuscava a mais bela das flores. No entanto na
fogueira do ciúme vivia uma maga,
que apesar de poderosa não conseguia encantar o comum dos mortais como o fazia
tal donzela. Um dia, enquanto o silêncio cobria o ar da noite e a lua
escondia-se atrás do manto negro eclipsando-se num disco negro, o monstro verde
da inveja levou longe de mais os propósitos daquela bruxa, e revolvendo o seu
livro mágico lançou uma praga à doce donzela... enquanto o dia fosse dia, e ao
dia sucedesse a noite, tal donzela que o seria de dia de noite seria uma loba
que erraria pela floresta em busca do seu contrário, que de dia fosse animal e
de noite homem, e só se encontrando no crepúsculo nascente, e no pulsar de um
beijo é a vida voltaria a ser vida, e nunca mais se desencontrariam...
E Raven sentiu que aquele lobo era a da
lenda, e que sabia bem o que aquele ser sentia, pois também ele era um ser
amaldiçoado, mas estariam eles fadados para se encontrarem e quebrar a sua
maldição? Quem saberia? Nem os Deuses poderiam saber... O destino tece
estranhas malhas que nos envolvem numa roda que gira incessantemente até chegar
ao seu destino e para além dele...
Perdido nos seus pensamentos Raven
perdeu o fim da narração de Pyros apenas ouviu os rumores das frases de Pyros
ecoarem na sua mente de que tal loba conseguia ouvir a voz da alma que habitava
nos seres vivos e sentir o pulsar dos seus pensamentos... Então foi isso! –
Pensou Raven - Ela deve ter lido o meu
pensamento e sentiu o meu destino, sentiu a minha dor e veio em meu auxílio...
Pois nos dois éramos iguais, tão diferentes e tão similares...
E imperceptivelmente e sub-repticiamente
um sensação crescia no interior daquela alma, uma centelha de luz acedeu-se nas
trevas densas e escuras da alma de Raven. E no seu interior começava a luta da
luz pela conquista das trevas, que sairia vencedor naquela luta eterna? A luz do
amor? Ou as trevas da vingança? Só o futuro o diria...
A noite ia alta quando finalmente Raven
teve a coração para perguntar o que ele sabia sobre os coiotes. E eis que o
passado escondido da sua Tribo se releva diante dele... E a chama da verdade
esmaga aqueles que são confrontado pela primeira vez diante tal força oculta...
Os coiotes era o povo das estepes, e sempre fora um povo pacífico e nunca
fizera mal a outros povos, até ao dia em que o filho do chefe da tribo coiote
entrou no território dos Corvos sem a autorização de Osgrod, e esta para servir
de exemplo a todos os povos humilhara o jovem guerreiro e acabara por o
torturar, acabando por morrer das agruras que sofrera... Quando fora buscar o
corpo do seu filho, o chefe dos coiotes fora recebido como um foragido, como um
criminoso, e jurara vingar a morte do seu filhos... E Assim foi... Vingou o seu
filho destruindo aqueles que havia morto o seu maior bem...
Raven ficou pensativo... Que fazer?
Continuar a alimentar a roda da vingança ou parar e esquecer...? Mas como
poderia ele esquecer a dor no rosto dos seus familiares enquanto morriam? Como
poderia ele esquecer a sua própria dor? O cheiro a sangue quando renasceu? As
cinzas que o banharam...? Não podia... Simplesmente não podia...
O dia nascia e Raven temendo revelar o
seu segredo despediu-se do seu amigo com a promessa que voltaria em breve, e
partiu em direcção ao povo coiote, com a vingança na sua alma, e a dor no seu
coração, deixando atrás de si mais um amigo, um aliado que se lhe juntaria quando
preciso fosse, contra um inimigo comum: os coiotes! Era noite quando partiu,
teria de descer até ao sopé da montanha como Homem que era, não poderia
servir-se das suas asas de plumas feitas, e voar até lá... Bem mais cómodo
seria abrir as suas asas e voar rumo ao seu destino, pensava que já fizera mal
sair ao meio da noite, teria sido melhor aproveitar a hospitalidade dos seus
novos amigos, e partir pela manhã quando fosse novamente corvo, mas não assim
era melhor... Eles não sabiam do seu segredo... E assim é que deveria continuar
a ser...
Sentindo
os gritos de dor da neve esmagada sobre a pressão dos seus pés iniciou o seu
rumo, em direcção ao sopé da montanha. Após alguns minutos de caminhada, viu um
vulto escuro estendido no manto branco da neve que gelava a almas dos
viajantes, que se aventuravam nessas noites... Parecia gemer de dor e de
sofrimento, voando sobre si mesmo, apresou-se em chegar junto do vulto... Era
um homem já envelhecido pelo passar dos tempos, de cabelos e barba branca,
contrastantes com o seus olhos escuros e profundos, jazia ferido, vertendo o
seu vermelho sangue sobre o puro branco da neve... Apoiando aquele corpo doente
e debilitado, Raven levou-o para uma caverna próxima, que o velho sábio lhe
indicara...
Já
no interior da caverna, que apesar de húmida era bastante agradável graças ao
crepitante calor que fugia da fogueira que ardia no seu interior... Agradecido
por o ter ajudado, O velho sábio, como veio a descobrir Raven que assim era
conhecido aquele ser, contou o que lhe havia sucedido... Dois membros do clã
dos coiotes haviam chegado perto da sua caverna, e haviam descoberto o velho
sábio escondido junto dela... Descoberto no seu esconderijo, tentou fugir, mas
as suas pernas já estão cansadas, e são velhas, e logo sucumbiu perante a
perseguição dos seus adversários, que uma vez tendo-o no seu poder
infligiram-lhe duros golpes, deixando-o como morto e partiram em direcção ás
estepes onde iriam juntar-se ao resto do clã...
Mas
agora estava salvo, graças a Raven, não que esperasse viver muito mais, mas
pelo menos podia morrer no calor da sua casa... E entre conversas amigáveis, a
noite ia passando... Cansados acabaram as cordialidades e foram dormir... Raven
já dormia, quando um agudo e sombrio grito ecoa pela caverna, acorda
sobressaltado, e vê o velho sábio agarrado ao peito, corre para junto dele e
toma-o nos seus braços... Mas já era demasiado tarde... nada mais podia ser
feito... nada mais havia a fazer, se não orar pela sua alma...
O
velho sábio deixara escapar o último suspiro de vida dos seus pulmões, jazia
agora sem vida nos braços de Raven. A velha águia cansada podia agora abrir as
asas pela última vez e voar rumo ao descanso eterno... A manhã ameaçava nascer,
tinha de se apresar, cavaria a sepultura mesmo no interior da caverna, seria
como um santuário, onde ele tinha vivido os últimos dos seus dias, e onde podia
agora descansar em paz... Abriu a vala, e colocou cuidadosamente o corpo
cansando e despejado de vida, e tapou-o com a terra sagrada, que o acompanharia
no sono eterno...
Saiu da caverna, ao longe o sol nascia
envergonhado, e num ramo próximo uma águia que dormia, acordava... Mas algo de
estranho trespassava daquele ser, parecia que Raven o conhecia e lhe era
familiar, impossível.... Sentia que o velho Sábio que acabara de enterrar,
tinha renascido naquela águia e lhe queria indicar o caminho para as estepes...
Seguindo o seu instinto, confiou naquele ser dos céus e seguiu-o, não faltaria
muito, poderia segui-lo pelos ares...,
Caminhando
em direcção às estepes, onde esperava encontrar o povo que destruirá o seu, via
o raiar do sol banhar aquelas terras que se estendiam diante de si, e no céu
ouvia os gritos apaixonados de uma águia que clamava a sua presença no azul do
firmamento... Não tardaria juntar-se-ia a ela, e juntos voaria para as
estepes... Já faltava pouco.... E então estaria nas estepes geladas pela
primeira vez...
E
o dia chegou.... E o Corvo brindou o sol com as suas asas... mas o infortúnio
mais uma vez apareceu, e a águia desapareceu dos céus, morta por uma seta de
algum caçador mais ousado, e sentindo o perigo Raven refugiou-se em alguma
árvore próxima, esperando que os caçadores partissem... mas o dia passava e
eles continuavam na sua caçada, roubando à natureza os seus filhos, matando e
destruído tudo o que se movesse... O Sol já se deitava quando finalmente eles
decidiram partir... Mais uma vez teria de se aventurar na noite para prosseguir
o seu caminho, e mais uma vez teria de percorrer todo o percurso a pé....
A noite chega calma e furtiva trazendo
consigo os encantos gélidos das trevas. O branco iluminado do dia, cedeu lugar
ao branco negrume da noite. As estepes continuavam pintadas do branco gelado
que caía dos céus em cândidas lágrimas vertidas. O vento corria livremente
pelos caminhos agora desertos. Chegara o frio e o gelo, nos caminhos apenas as
sombras brincavam com os ramos gelados que abraçavam a vestal brancura das
neves que se alojavam no seu seio. Caminhamos despercebidos, por esses caminhos
desertos, absortos nos nossos pensamentos, invisíveis para os poucos seres
corajosos que se aventuraram no gelo da noite. Mas algo, lá distante, no seio
das estepes, mexia, seguindo os cambiantes das sombras escondidas nos recém
escurecidos caminhos, uma figura sombria, marcada pelas agruras de uma vida de dor e desespero avança cautelosamente, procurando
vencer o seu destino...
Raven avançava pelo tapete branco que se estendia perante os
seus pés. Como contrastava a pureza cândida da neve com a negritude da sua
alma. No entanto, em algo eram gémeas, ambas eram geladas... Uma pela natureza,
e outra pela tristeza! Todos aqueles que amava lhe haviam sido arrancados
prematuramente, e mesmo o recém feito companheiro lhe havia sido roubado pelo
destino... Mas não importava ele era mais forte... ele poderia vencer o próprio
destino, e rebelar-se conta a vontade dos Deuses... Até podia ser que eles
tentassem impedi-lo de chegar às estepes, e alcançar os seus inimigos, mas ele
iria conseguir faze-lo... E Na verdade consegui... Amanhecia novamente quando
Raven entrou nas estepes pela primeira vez... Inteligentemente decidiu aguardar
a chegada da noite, e dormir numa árvore vizinha, pois seria difícil
defrontá-los enquanto corvo... A vingança esperava por momentos, mas eles iriam
sentir o metal frio da sua sede... iriam pagar por tudo o que lhe haviam
feito.... Em breve... Muito breve...
Repousava nos braços caídos de uma
arvore quando sente uma bela donzela aproximar-se de si, e na sua voz angelical
dirige-se a ele:
- Raven..! Ouve-me por favor... – Exclamou
– O meu nome é Moonwoolf, já nos cruzamos uma vez, era eu loba... Procurei-te
todo o dia, sei que temos poucos momentos pois a noite chega e com ela a minha
maldição e a tua. Quando olhei nos teus olhos vi algo de belo. Tu não és esse
anjo vingador... Será que vale a pena, os teus amigos e familiares estão
mortos, será que queres desperdiçar a tua vida numa cruzada sanguinária... Será
que vale a pena? Valerá verdadeiramente a pena? O ódio só gera ódio, o
resultado da vingança é nova vingança... Essa nuvem negra que paira na tua
sombra tem de partir... Ouve-me... Por favor...
Como sentindo que Raven a não ouvia e
sentindo que não conseguiria mudar o que ele sentia partiu em direcção à
floresta... Raven podia sentir a sua dor, e no entanto também sentia a paixão
nas suas palavras... E corvo chorou... Pelo amor que não podia viver, pois
havia hipotecado a sua vida à vingança... E por ela devia morrer... Era esse o
seu destino...
Mas seria verdadeiramente? O fado da
nossa vida corre estranhos leitos até à foz....
O prenúncio da noite chega... E com ele
a escuridão... A lua ergue-se majestosamente sobre a vida terrena... As
estrelas pintalgam o pano negro estendido sobre a mesa do universo e a vida
adormece. Mas Raven acorda, desperta da sua maldição e parte em busca de um
povo inimigo... Parte com a sede de vingança no sangue... Pulsando...
Exaltando... Os Deuses divertem-se! Riem do destino de Raven, mas no fim será
Raven o vitorioso...
Após breves instantes chega junto
aquele povo, e olhando para ele recorda-se do seu, e pensa que se como
Moonwoolf não teria razão... Será que valeria a pena vingar? Não seria o seu
pai o causador de todo o mal que se abatera sobre a sua tribo? Mereceria aquele
povo mais castigos, além de já ter perdido um filho?
No meio do acampamento viu um grupo ser
castigado. Quem seriam? Que tinham feito? Eram coiotes, disso não havia
dúvidas... As marcas não deixavam enganar...
Curioso chegou perto do acampamento e
foi então que foi detectado por um vigia, e quando esperava ser recebido por
ponta de armas afiadas, foi recebido por abraços fraternos e diante dele o
chefe dos coiotes ajoelhou-se chorando, e reconhecendo-o disse-lhe:
- Perdoa-me jovem corvo... Raven meu
filho. Cometi um erro enorme... Matei a tua tribo, perdoa-me, foi a ira de ter
perdido o meu filho, mas além do meu filho perdi a minha vida para as garras da
vingança... perdoa-me se fores capaz...
E perante aquelas lágrimas sinceras
Raven ficou confuso sem saber o que fazer... Concederia o perdão? Ou exigiria a
alma daquele ser? Apesar da guerra contra o seu povo ser motivado pela ira da
vingança ainda restava o ataque aquele velho sábio...
Levantando o chefe pelos ombros
pergunta-lhe porque puniam aquele grupo, e eis o choque da resposta... Como uma
simples palavra, uma frase mínima muda o rumo dos sentimentos... Aquele grupo
havia ataco o sábio ancião, que habitava a caverna, e como tal, pela lei da sua
tribo tinham de ser castigados...
E então Raven viu o erro em que
vivia... Não poderia matar aquele povo... Estava cego pela vingança, Moonwoolf
estava certa a vingança só leva a mais vingança, se não parasse aqui nunca
pararia... Mas pararia, agora parava...
E a luz ganhou a luta... O coração de
Raven ficou despejado de qualquer trevas e na sua alma apenas havia lugar para
o amor... E no seu interior revelou-se-lhe a paixão por uma loba, e nas asas de
um relâmpago apressou-se a partir recusado os pedidos que ficasse naquele
povo... Mas algo mais forte imponha-se a Raven, tinha de a encontrar e acabar
com a maldição... Destas vezes os mortais riam dos Deuses... E o Cupido jocoso,
ria... ria dos seus pares...
A noite estava perto do fim e Raven
perdido na floresta sem encontrar a loba dos seus desejos. Procurava...
Procurava mas sem sucesso... A lua já dançava com o sol, no seu bailado fugaz e
eterno quando finalmente a encontrou... Olhou nos seus olhos e viu que ela
sentia o mesmo que ele... Ela sentiu logo o que havia sucedido, e Raven ficou
sem palavras...
E no silêncio de um olhar tudo fora
dito... Mas aquele amor era impossível, como o quebrar...? E a dor voltou ao
coração de Raven, mas desta vez a dor queimava, ardia no seu âmago, amar e não
poder... Querer ser feliz e não conseguir... Hipnotizado no olhar do seu amor,
naquele momento em que a eternidade foi efémera e o tempo parou, Raven, morreu
como anjo e nasceu como homem.
Dos seus olhos nasceram em cascata
gostas de oceanos perdidos nas brumas do tempo e gotas de amor destiladas
pingaram sobre os doces olhos castanhos de Moonwoolf... E o sol nasceu e a loba
fez-se mulher, e Raven continuou a ser o que era... Um Homem!
E o sol bailou no sorriso de
MoonWoolf... o feitiço havia sido quebrado, podia ficar juntos a eternidade, e
no suspiro de um beijos juntaram os seus lábios, e a lua e as estrelas bailaram
em redor do sol, brindado e abençoando aquela união amaldiçoada pelos Deuses,
mas protegida pelo destino e pelo amor...
As trevas haviam perdido este combate,
a luz e o amor haviam destronado a vingança e as trevas... E mais uma vez o
destino fugiu às mãos dos Deuses galhofeiros e havia-os atraiçoado,
roubando-lhes um anjo vingador, tornando um seu instrumento numa alma livre...
E sobre o céu azul de um novo dia, uma
nova esperança de futuro nasceu para uma alma outrora destruída pela dor e
mágoa renasceu para o amor e a felicidade...
E das trevas nasceu a luz...