sábado, 5 de janeiro de 2013

A Jazida



Ainda hoje me pergunto o que teria sucedido naquele dia. Apesar de não passar de uma nuvem na imensidão azul da minha existência, todos os instantes daquele dia me assolam o pensamento e atormentam a luz dos meus dias.


Vivo nesta turba de pesadelos que se encerra em mim. Deus tornou-me escravo do meu ser. Nestas quatro paredes vivos acorrentado por correntes de vidro, amordaçado por esta mordaça que não vejo. O Silêncio esmaga os meus ouvidos, que choram... Choram de dor. Lágrimas que me escorrem pelo rosto! Se pelo mesmo esta dor surda se calasse! Imagens aterradoras percorrem-me a mente procurando vencer-me pelo cansaço e pela fadiga. Eu tinha tudo: um bom emprego, amigos, tudo... Mas tinha de ser ambicioso, sentia-me só, apesar de rodeado de amigos sentia que me faltava algo. Quando a noite chegava eu sentia toda a sua força invadir-me, tornava-me melancólico e na escuridão chorava...

Então apareceu ela, quase perfeita, tal como um anjo de morte. A sua beleza ofuscava a mais forte chama, a própria lua parecia torna-se pálida perante a sua presença.

Ainda me lembro como se fosse hoje, o momento em que a conheci: o hálito salgado do oceano soprava ligeiramente na minha face, os dourados grãos de areia estendiam-se diante de mim, a lua esboçava um sorriso envergonhado. Qual vagabundo sem rumo vagueava  pelas dunas, abandonado aos meus pensamentos. Minha única companhia era a velha gaivota, que navegava nas ondas do vento, ao sabor da melodia que o mar entoava.

Misteriosamente um semblante irrompe das ondas, uma deusa havia nascido! Sua beleza inebriava os meus sentidos, mas a noite é caprichosa e o luar que iluminava tão esbelta figura esvaneceu-se em escuridão, ofuscando a minha visão. Quando o luar regressou a sereia havia voltado, com toda a certeza, aos reinos de seu pai Neptuno. Desinteressado continuei o meu passeio nocturno, afogando a minha solidão nos meus pensamentos.

Mas o maior desinteresse é o maior dos interesses. Oh! Que fogo era este que consumia as minhas entranhas. Hoje vos digo, o amor é Dor! Mas aquele que diz que não quer amar é louco, porque amar é viver e quem nunca amou não chegou a viver. Apenas vageou angustiado na sua solidão, afogando-se na mágoa do desespero, ardendo na dor da solidão. Esta era a imagem que reflectida no espelho eu vivia todos os dias da minha vida, até a conhecer. Independentemente do que sucedeu, sinto que vivi, por aquelas escassas noites vivi... Pois amei!! Depois...!? Depois morri... Morri para o amor, morri para a vida. Pouco me importa que hoje me chamem louco e que me persigam, pois por breves instantes fui livre, por efémeros momentos Vivi!!!

Outro dia se havia passado, a noite renascia, cobrindo com o seu manto negro a luz do dia, o mar cantado belas baladas de embalar. Adormecia os peixes que faziam dele o seu leito. Passeava ensombrado pela minha solidão, quando ao longe, vejo sair das águas a filha de Neptuno, qual serei enfeitiçada.

Naquele momento o meu coração tornou-se cativo, mas antes que me pudesse dirigir aquela Afrodite que cavalgava as ondas na sua concha dourada uma voz ao longe clamava pela minha presença... Mas o destino não perdoa. Tal fatal e certo que é...

E na noite seguinte, finalmente, conheci a bela donzela. Mais uma vez ao por-do-sol saiu das águas profundas e dirigiu-se a mim. Embriagado pelas suas doces palavras, sentia-me embalado e extasiado por finalmente conhecer aquela que ocupava todos os meus pensamentos. De seu nome Isabelle Renoir, sem o saber era esse o nome da minha Ama e Senhora.

Como uma criança desajeitada percorri a praia em tão aprazível companhia. O seu cabelo negro ofuscava o luar, caindo numa cascata celestial sobre os seus ombros, seus olhos verdes reflectiam o sabor salgado a mar, sua pele alabastro prendia o meu olhar, seu andar delicado como o orvalho matinal a perder-se numa folha. Embriagado pelos sentidos, o tempo voou e em breve seria meia-noite e o anjo teve de subir aos céus... E partiu...

Nos dias seguintes encontramo-nos, sempre na praia. Sempre à mesma hora. E sempre antes da meia noite, qual Cinderela, ia-se embora. Apesar de curioso nada perguntei, pois o amor é o maior anestésico e eu estava completamente entorpecido pelo seu brando torpor.

Mas a felicidade é efémera e o meu coração ficaria de luto por minha tia. Nessa manha fatídica a verdade revelou-se aos meus olhos. Olhou-me frontalmente eu chamei-a mentirosa...! Tinha que ser engano. Ao lado da campa de minha saudosa tia estava uma vela jazida de 1899, sua moradora? Isabelle Renoir... Que havia morrido afogada. Mas não...! Apesar da foto que aí se encontrava gravada não quis acreditar. Não poderia ser a mulher que todas as noites eu tomava nos meus braços. Tinha que ser coincidência...! A sua avó certamente... Cujo nome havia sido dado à neta.

A noite chegou e a minha mágoa e incerteza afoguei no regaço da minha amada. Mas uma vez mais ela iria embora à mesma hora. Mas seria a última vez que ela faria tal...

Na noite seguinte coloquei-lhe um tranquilizante na bebida que havia levado comigo e num abraço eterno ela adormeceu nos meus braços. A lua sorria desdenhosa, o mar embalava-nos com o seu doce sabor a viagens de mil aventureiros, no ar as gaivotas contavam ao ventos contos de viúvas e sereias.

Ao longe o sino da igreja soltou doze longas, fatais badaladas... Então a metamorfose deu-se! Onde antes jazia uma vela donzela, vivia agora um esqueleto, acusando a passagem do tempo...

Ainda hoje tento apagar esta imagem da minha mente, mas em vão! Por vezes temos o suficientes, mas egoisticamente queremos mais. Queremos tudo... Para depois tudo perder. Devemos pagar pelos nossos erros, assim sou eu... A todos os momentos pago pelo meu! Até à eternidade. Tinha tudo, mas queria mais, agora nada tenho...

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

MoonRaven (O Corvo da Lua)



        No crepúsculo nascente, figuras distorcidas pela mágoa na alma de uma vagabundo ignorado pelas sombras que se projectam na alma, um semblante negro eleva-se das cinzas do passado. Nascido da dor e da destruição do seu povo jurou vingança sobre o sangue dos seus antepassados, feto da morte renasceu para a vida para resgatar à vida os pecados do passado.

         Apoiado sobre o joelho magoado ergue-se para o futuro em direcção à noite que se adivinha, augúrio do seu destino a noite que apadrinhou o seu nascimento era negra como a sua alma e só como o seu sentir... A sombra negra da morte cobre de negro o seu destino... Algo brilha na sua mão... É o instrumento da sua vingança, sente o seu gume afiado trespassar a frágil pele da sua mão, sente impotente a dor e o sangue que escorrem deliberadamente pelo seu pulso, e jura... Jura aos céus, à terra e à morte... Vingança é o meu nome... Morte é a Minha vida, eis que me torno o instrumento da destruição... Eis que me ergo morto, para a morte viver no coração dos meus inimigos...

         Para trás ficou a aldeia na qual em tempos idos fora feliz... Onde em tempos esquecidos na névoa do tempo o riacho corria em claras águas, flores pintalgadas de aromas perfumados invadiam a nossa mente com a doce candura do seu aroma, onde as crianças brincavam junto ao velho carvalho que os acarinhava com a ternura dos seus verdes anos... Enfim, onde a vida nascia e crescia; era agora a sepultura de um povo, o cálice de cinzas anónimas, sem rosto, que se misturavam no cruel sabor a morte que pairava na neblina que se estendia ao longo do riacho vermelho de sangue... De sangue da terra que chorava a perda de uma povo... Ninguém havia escapado ao cruel gume do inimigo que queimava... Que ardia na alma, na carne...


         No ar pairava o cheiro à carnificina, o aroma de carne queimada entranhava-se nas narinas do viandante que passava, como punhais de dor que penetravam nas narinas, traziam a dor da morte... a mágoa das despedidas... os céus choravam lágrimas impotentes para parar as hostes que invadiam os campos, ecos distorcidos da dor que se soltou daquelas gargantas feridas, troam pelas negras nuvens que se juntam recordando as memórias inacabadas do silêncio que ficou, chorando as palavras murmuradas em surdina pelas mães mudas de dor, de peitos rasgados pelos gritos dos seus filhos...


A morte bailava pelos campos, onde em tempos idos a vida dançava, vivalma jazia naquele solo maldito... Mas no silêncio ensurdecedor um raio fugido dos infernos sulfúreos rasga o azul veludo e queima a doce face da terra, incendiando o seu seio, e dessa união fatal, nasce o fruto do seu pecado... Das chamas nascido, clamando por vingança, alimentado pelo sangue dos seus inimigos, nasceu um corvo maldito, que da dor do seu povo homem se fez... e das cinzas do passado se ergueu e caminhou em direcção à negra noite, que o recebeu no seu seio, como se dela fizesse parte aquela alma negra, como seu filho fosse...


         Cruéis tempos vivemos... mas mais cruéis é o futuro que virá, ventos de vingança sopram promessas de morte... deixam entrelaçadas no seu silêncio promessas de dor e mágoa. Pegadas frias passam pela quente terra que ferve de dor, pelo sangue vertido pelo ódio daqueles seres, chegaram pela noite, partiram antes dela chegar, mas consigo trouxeram uma negritude mais obscura que a própria noite, e agora chora o vento as lágrimas secas que os mortos não podem chorar...


         Um ser misterioso ergue-se das chamas... no seu olhar arde o fogo da vingança, o seu destino estava traçado...trazia sangue nas suas mãos... sedento de morte renasceu do pecado... De olhos fechados sentiu o vento frio beijar as suas faces, e soltou um longo e seco riso, e deixou as lágrimas temperadas de dor e desespero correrem livremente pela sua face, alojando-se no canto dos seus lábios, onde morreriam... Ria porque vivia, chorava porque tudo morrera e mais morreria...


         Seus olhos castanhos-claros clamavam pela morte... porque havia ele de viver? Porque tinha sido ele o escolhido? Não!!!... Recuso tudo... Quero paz da morte... Oh!!! Deuses sejais bondosos e dai-me a paz eterna... Eu rogo-vos, dai-me a morte... Deixai-me morrer na ponta deste punhal que sinto ao meu peito... deixai-me partir... Tomai a minha vida...


         E de um só movimento cravou o punhal no seu peito sedento de partir, e doce lágrimas de sangue correram, lágrimas que logo se tornaram num rio que corre, fugindo à nascente...e regaram a terra inundada pelo sangue dos seus parentes, sentiu uma gélida dor trespassar o seu peito... Mas pior foi a dor da desilusão... Apesar de ferido, seu coração batia... E nesse momento compreendeu, nesse instante viu que nada mais era do que um instrumento... Um instrumento nas mãos de algo superior que calmava pela vingança dos seus filhos... E se era vingança que queriam, morte iriam ter...


         Limpou o punhal ensanguentado na sua capa negra, colocou-o junto às suas botas altas, de um negrume mais negro que o da sua alma, e ajoelhando-se agarrou no sabre que jazia no chão... Perdeu singelos momentos contemplando a beleza dos entalhes no punho e na bainha... Dois dragões entrelaçados numa união mística e mágica, ornamentavam-no. Delicadamente colocou-o no seu dorso, por detrás da capa... E Mais uma vez olhou o céu e mais uma vez chorou...


         E em direcção à noite partiu, sua capa flutuante fugia do seu dono, temendo o seu destino... Qual corvo perdido na imensidão esmagadora do silêncio da morte que o rodeava, partindo em busca da sua presa... Vingança o seu nome...


         Raven havia renascido... Filho da terra e do trovão... Vingança e morte eram as suas promessas, das cinzas havia nascido e para ela voltariam os seus inimigos e todos aqueles que se colocassem entre eles e o prometido...


         Corvo da morte ou corvo maldito, na linguagem nativa Raven, era um jovem de cabelos longos e negros, filho de Osgrod e Eneida, tinha sido um jovem guerreiro, dotado da coragem dos destemidos e da eloquência dos predestinados. Seu pai, Osgrod, chefe dos Corvos, povo que habitava junto ao rio no planalto que fazia fronteira entre a montanha, território habitado pelas gentes da montanha e a floresta, zona dominada pelo povo da floresta. Sua mãe, uma doce donzela, que na sua candura fazia inveja ao próprio brilhar do sol. De seu pai havia herdado a força e a liderança, de sua mãe a beleza desmedida... Filho único desta união foi educado de modo a ser um digno sucessor de seu pai, conhecido pela justeza e firmeza das suas decisões, líder respeitado por todo o povo e pelos povos seus vizinhos. 



 Mas de que tal havia servido tal?? De nada... Pois agora jazia morto... e dele apenas cinzas restavam... apenas seu filho vivia. Vivia por capricho desditoso do destino... Rumo a um futuro adivinhado, caminhava aquela alma negra... em que pensaria, não me atreverei a contar... Apenas vós podeis adivinhar... Pela madrugada dentro fugiu dali... passos apressados fugiam às recordações de dor... mas essas eram mais rápidas... e teimavam em pesar naquela mente fustigada pelos ventos da dor e do passado... Perdido nos seus pesares, nem repararia naquele pequeno objecto, se não fosse o seu tremeluzente brilho, que reflectia o luar das luas que dançavam no céu negro... Pegou naquele pequeno objecto e chorou... por uma última vez, chorou de dor.... Um fio, um insignificante pedaço de metal, a causa daquelas lágrimas... Mas não... não era o fio... mas sim as recordações a ele associadas...

               Recordações de mágoa e de dor... Esse sentir que nos fere e nos dilacera o frágil viver em que passamos por este efémero mundo. Aquele pequeno cordão de metal precioso havia sido pertença de uma bela dama Akr’a. Curioso... como um ser pode ser tão forte e frágil numa génese comum, que se funde numa só identidade. Como poderia o mensageiro da morte sucumbir perante um pedaço de metal brilhante?... Mas não... não era o objecto em si, mas toda a simbologia envolvente a tal, toda a carga emotiva que o rodeava como uma áurea invisível. Recordações esquecidas noutra vida fluíram de novo para o presente, transportando aquele corpo cansado para o passado distante... para um passado que magoa o presente, feito da dor do futuro... um passado esquecido, mas no entanto recordado a cada instante do seu nascimento...

       Perdido na dor do seu passado, navega na mágoa das recordações, e regressa a um passado distante, para além do portal da morte. Agarrado aquele pedaço insignificante, solta lágrimas salgadas de dor e de paixão, lágrimas que correm sequiosas do solo queimado, procurando humedecer o chão sequioso e árido, mas antes de beijarem o seu rude corpo, as salgadas dádivas evaporaram-se no halo quente no fogo que se extinguiu, mas ainda continua lavrando invisivelmente no interior da terra.

         Aquele pedaço de metal dourado, insignificante para o resto do mundo, estava carregando de um significando pungente para aquela alma negra, e assim embalado pelos braços da vida passada, mergulha nas águas torpes da memória, e viaja até ao tempo em que os Corvos viviam em paz como a vida...

         Ainda lembra aqueles tempos idos de calma melancolia, o rio correndo livremente em direcção aos braços da imensidão azul do mar. Tempo de alegria e felicidade reinavam por aquelas pradarias extensas e verdejantes, como os olhos da primavera que se adivinhava nos áugures das aves vindas do sul. Como então a vida era bela e pacífica, como é doloroso ver que o verde do passado deu lugar ao fogo do futuro, nunca mais aquelas terras serão cobertas de flores, pois para sempre ficaram marcadas pelo sangue derramado, pela dor daquelas almas errantes, que vagueiam por aqueles campos procurando o sossego e a paz em tempos seus, e agora perdidos nas brumas do passado.

         Memórias passadas invadem o cérebro do jovem corvo, que na noite se fez homem, o nevoeiro dos tempos inebriou-lhe o cérebro e levando-os nos seus braços, conduziu-o a um passado distante; deixemo-nos envolver nesse místico nevoeiro e perdidos na sua doce traição voltar a um passado distante, e viver vidas vividas...

         A lua ia alta, cheia e redonda, enchendo o ar com o seu mistério e doce aroma, embalando os gritos que saíam de uma velha cabana junto ao rio, gritos de dor de alguém que se prepara para dar ao mundo nova vida. Preparava-se para ver a luz do dia mais um rebento da família dos corvos. Como é misteriosa e bela a génese da vida, fruto do prazer, nascido na dor, para se fazer vida... Germinado na paixão entre dois entes que se complementam e se abraçam num beijo quente e místico, unindo as suas almas e corpos num momento único em que duas vidas incompletas de complementam reciprocamente, o fruto daquela paixão nasce no meio de gritos de dor de uma mulher, que exalta preces de dor à Deusa Mãe que lhe entregue o seu rebento são e saudável, e neste misto de prazer e dor, nasce o fruto... O fruto de uma família, que se espera que eleve em voos mais altos e mais ousados o sangue da família, e que ouse ir mais longe, que desafie ser mais forte, que atreva-se a ser mais veloz...

         Eneida gemia de dor, e tremia de medo, de medo de falhar, e de não dar a Osgrod o filho que este sempre quis, o filho que assegura-se a continuação da sua linhagem e levasse o nome dos Corvos mais longe. Tinha sonhos grandiosos, projectos imperiais para o seu filho, ousava ver o seu filho imperador, reinando sobre as outras tribos, instaurando a paz e a harmonia pelo mundo dos mortais, tornando-se semideus, assegurando o seu lugar junto do Deus trovão e a Deusa Terra.

         E pela noite os gritos de Eneida fizeram-se ouvir pelas estepes que acompanhavam o curso do rio até ao mar, já nascia o dia quando esses gritos de dor foram silenciados pelo choro de um recém-nascido, que brindava o seu novo mundo, com um celestial acorde de lamentos, tirado do ventre materno, lugar quente e seguro, para o frio, cruel e inseguro mundo dos vivos, chorou lamentando a sua triste sorte, confuso por não saber onde estava e porque o haviam arrancando ao seu refúgio materno. Osgrod tinha o seu imperador, era um rapaz...nascia Raven...

         Noutra cabana no meio da floresta, à mesma hora da mesma noite, outros gritos eclodiam na noite. Em orações pela vida de um feto frágil, as árvores erguiam os seus verdejantes ramos aos céus, implorando à lua que permitisse aquele nascimento. Uma mãe só e perdida no verde deserto ardia nas dores do parto, agoniando e desesperando, mas tinha de ser forte, em nome daquele rebento que queria ver a luz da lua... A Manhã nascia e a noite morria quando finalmente aquela criança saiu do ventre materno, relutantemente abriu os pulmões para a vida e soltou um choro de vida, saudando os últimos raios de luar que entravam pela janela, e banhavam a cama onde jaziam mãe e filha.... Em homenagem à sua tribo e à sua madrinha, a lua, chamar-se-ia Moonwoolf...

         Mal sabiam estas duas criar que as suas vidas estavam interligadas por laços mais fortes que a vida, mais fortes que a morte, e que na vida e na morte seriam sempre um e apenas um, separados seriam incompletos, mas juntos seriam um ser completo, só juntos se sentiriam bem...

         Raven estava confuso, como? Como poderia ele ter recordações de uma pessoa que não conhecia, nunca a tinha visto, nunca tinha conhecido outras tribos, o seu pai, Osgrod, sempre evitara o seu contacto com tribos estranhas, apenas conhecerá os Corvos, desconhecia que existiam outros... Mas a verdade é que elas estavam lá... aquelas recordações. Mesmo antes da recordação da sua doce Akr’A. Mas o torpor das recordações idas era mais forte, e logo arrebataram o jovem àquelas cogitações e levaram-no de volta ao passado...

         Recordações da sua mocidade passaram-lhe correndo pela memória, os seus primeiros passos, cambaleantes pela relva ver e fria, baptizada pelas gotas de orvalho nocturno, que beijavam as delicadas pétalas das flores que dormiam sobre o verdejante tapete. Recordou a primeira vez que a sua prometida, Akr’a, se fora apresentada, tinha uns meros seis anos de vida, e estava mais interessado no pássaro que voava para um ramo distante, que na jovem que lhe estava destinada. Como é misteriosa a vida, e a atracção entre dois seres, ao princípio ignoram-se, uma relação fria e distante, mesmo desinteressada; mas à medida que o tempo passa esse sentimento muda, e o que era frio e distante, transforma-se numa atracção mútua, cada vez mais forte e próxima, e o gelo inicial quebra-se, e onde antes corria o gelo, corre agora um rio de sangue quente, galgando pelas veias acelerado pelo calor da paixão, é este o mistério que é a vida, como ela encerra em si contradições que nos parecem evidentes e naturais.

         A própria vida em si constitui uma contradição, cada dia fingimos viver um dia, acordamos e pensamos que mais um dia de vida nos brinda com os raios de sol, quando de facto mais um dia de vida nos é roubado pelo tempo, esse infame traidor, que nos prolonga o sofrimento e nos obvia os tempos de alegria, essa ilusão irreal que nos atormenta ao longo da nossa fugaz existência. Vede como ele nos engana, quando vivemos em momentos de tristeza, demora em passar, demorando o nosso sofrimento, tardando em trazer momentos de alegria; mas quando esses momentos chegam, logo ele se apressa em fugir, em nos devolver a tristeza que não queremos. Enfim, é essa dualidade, esse sentir, que torna a vida o místico que ela é, a capacidade de sofrer e de amar, de morrer, e mesmo assim ser recordado, e renascer nas memórias de alguém que nos recorda com paixão, apesar de não mais existirmos, continuamos a existir, nem que não seja nas memórias de algum desconhecido que ignorados nos recordar.

         Seriam essas recordações que fizeram Raven viver? Seria a sede de Deuses revoltados contra o fado de um povo? Não sei.... Não vós posso dizer a certeza, tudo o que eu poderia dizer-vos, seria insuficiente, impreciso e deficiente, tirai vós as vossas conclusões, apenas sei que ele vive... E com eles as recordações de um povo...

         Mas agora é tempo de também nós nos deixarmos envolver pelas brumas do passado, e descortinar o que se esconde atrás dos cortinados de nevoeiro que nos vendam os olhos... Vejamos as imagens que vai na memória do jovem corvo...

         O tempo fluía no seu cérebro, desde o primeiro beijo às primeiras aulas sobre a arte de manejar as armas, que um dia teria de utilizar em nome do seu povo. Relembra com gáudio o primeiro pôr-do-sol passado com a sua amada junto à pequena queda de água, onde os peixes saltavam alegremente, tentando vencer a força do rio; relembra sorridente, o susto causado pelo velho urso, que ali se deslocava paras as suas pescarias habituais. Enfim pequenas coisas que na altura pareciam insignificantes, mas que agora davam outro tom à sua velha vida. É curioso... Passamos uma vida ignorando essas pequenas coisas, desconhecemos essas pequenas insignificâncias; voltados sempre para as grandes questões; e no fim, quando já pensamos que nada faz sentido, e nos encontramos confusos, perdidos no vazio que se tornou a nossa vida, são essas pequenas coisas que aparecem a colorir as nossas recordações, não as grandes questões esquecidas e arrumadas no baú das recordações. São esses pequenos momentos que nos fazem sorrir, quando as trevas da dor nos rodeiam, que nos fazem soltar doces lágrimas de saudade, toda essa torrente de emoções que nos aborda quando menos esperamos, e nos assalta o espírito e nos consola no meio da tempestade...

         E eram esses momentos que invadiam o cérebro de Raven, que o invadiam, e que ora o faziam chorar, ora sorrir, e nesta dualidade de sentir ia recordando os tempos que não voltam a ser, memórias perdidas em outra vida, encurralado nesta maldição, estava proibido de descansar, queria juntar-se na morte aos entes queridos perdidos para a terra, mas não podia... A sede de vingança ordenava-lhe que continuasse vivo, e que lutasse até ao fim...

         E nesse sentir de frustração, lembrou-se da primeira caçada, e como se sentiu quando regressou de mãos vazias, e as palavras encorajadoras de seu pai, que lhe dizia então: “meu filho, não fiques assim triste! Outras caçadas virão! Pensa nas vidas que foram poupadas, e que poderão crescer, para se tornarem mais fortes, para te darem mais luta! E quando estiverem fortes, e tu conseguires vencer, sentirás uma maior alegria! Pois, repara, que a vida com demasiadas facilidades não tem sabor algum, apenas uma vida dura, em que cada dia é uma batalha pela vitória, pela sobrevivência, quando tiveres alcançado a paz e o sabor da vitória, estas serão mais doces, mais saborosas!”

         Até hoje nunca entendera o verdadeiro significado de tais palavras, mas hoje... Aqui...!!! No campo onde o sangue do seu sangue jazia, onde a terra beberá o sangue da sua estripe, atingirá o significado de tais palavras. Mas agora era tarde demais para agradecer a seu pai, para lhe dizer que finalmente compreendia o que lhe quisera dizer naquele dia, e ele infante, não havia entendido.

         Mas à sombra daquele céu negro, carregado pelo negrume da dor que varia a planície, muitas mais recordações viriam e apunhalariam o coração deste jovem, até acabar por sucumbir à realidade, e aperceber-se que aquele jovem do passado já nada tinha haver consigo, ele tinha morrido, e no seu lugar renascido uma alma negra, carregada de ódio e de mágoa, que apenas tinha por objectivo a vingança, sem espaço ou tempo para amar e ser feliz. Os sentimentos bondosos haviam perecido naquele campo de batalha, em seu lugar apenas sentimentos malévolos enchiam a sua alma...

          E neste palco a que chamamos vida, o tempo não tinha importância naquela noite, poderiam ter passado séculos, milénios, mas a noite continuava, e à medida que aquele corvo negro envelhecia, mais amarga se tornava a sua sede de vingança... Era por isso que ele ali estava, era para tal móbil que os Deuses lhe haviam dado vida, então cumpram-se os seus desígnios....

         E quando pensava que estava a salvo das velhas recordações, nova vaga percorre-lhe o corpo, e instala-se-lhe no cérebro e leva-o noutra viagem no tempo, arrastando-o numa torrente de sentimentos, que pensava escondidos e fechados no cofre do passado, mas o tempo, qual hábil ladrão consegue abrir todas as fechaduras. E quando menos esperamos, assalta-nos com os receios do passado...

         Relembra como sempre receou ser impotente par proteger aqueles que amava, para proteger o seu povo, lembra-se de contar os seus medos, os seus receios, os seus pesadelos, a seu pai; e lembra-se do riso sarcástico e jocoso que seu pai lhe lançara, apelidando-o de infantil, dizendo-lhe que um Corvo nada receia, enfrenta o futuro por mais negro que ele seja. Ousa enfrentar os Deuses e vencer se necessário for, mas que não liga a medos, porque não passam de convicções de falhanços que podem nunca acontecer, convicções que devem ser mortas na sua génese, para que quando em luta, não sejam recordadas, e o medo não sobrevenha ao raciocínio frio e mecânico, que a vitória requer. Mas para o reconfortar, também, lhe havia dito, que é natural todas as pessoas terem receios, que ele próprio tinha receio a perde-lo e a Eneida, sua adorada esposa, mas que afastava tal receios, que apenas lhes dariam importância no dia em que passassem de receios, a terríveis realidades...

         Será que teria razão o velho Osgrod??? Será que devemos ignorar os nossos receios? Devemos apenas considera-los se tornarem-se reais? Ou devemos tê-los sempre presentes? Que dilema este que nos assalta a mente... O medo! Sempre o medo, quem nunca teve receio de algo? Mente quem disser que não, pois o medo é tão natural como a existência, é algo que faz parte da vida. Vede que até o mais insignificante dos seres, que a mais irracional forma de vida, mostra receio de algo... Quem é que se atreve a dizer que nada teme... Apenas os loucos.... Qualquer forma de vida tem receios, receio dos seus predadores, e os seus predadores têm medo de outros predadores. Até os seres, ditos racionais, têm medo... Medo do desconhecido.... Receiam o que não compreendem... Vede como a maior parte deles receiam a morte, um facto tão natural como a própria vida, e no entanto receiam esse momento... Vede como receiam aquilo que a sua mente não consegue entender, acontecimentos naturais, que face aos seus princípios, aos seus conceitos, não poderiam ter acontecido. E então para explicar tais acontecimento, dizem que é um acto sobrenatural, obra de um ente divino superior à sua raça, e surge a religião. Acto de fé cega, de crença num ente misterioso que comanda toda a vida, e apenas a ele se deve a origem de todo o existir... Mas existirá esse ser materialmente? Ou será apenas uma idealização conjunta, de um grupo de seres, que para enfrentar os seus receios, que para explicar aquilo que os seus conceitos limitados não conseguem intelegir, criaram esse ente imaginário...???

         Não será o renascimento de Raven prova suficiente da existência dos Deuses? Da sua existência material? É verdade ou não é, que ele apenas vive graças aos auspícios dos Deuses? Ou será que Raven nunca morreu, ou morreu e não renasceu, será apenas uma recordação, ou uma personagem saída da imaginação febril de algum escritor que desconhecemos??? Será realidade ou mera ficção? Mas antes de perguntarmos se Raven existe, temos de colocar uma pergunta necessária, que se impõe como premissa: será que nós existimos? Serás que vós existis? Sim...!!! Porque antes de Raven existir, tendes vós de existir, porque Raven apenas existem em vós, em cada um de nós, que lê ou escreve a sua estória, que recorda a sua lenda...

         A essa pergunta apenas lhes poderei dar algumas ideias, nunca certezas, pois só cada ser em si poderá saber se existe... Não basta concluir que existimos fisicamente, porque as pedras do chão que pisamos a cada dia, é indiscutível a sua existência material, mas terão consciência da sua existência? Poderão elas dizer que existem verdadeiramente... Não! Não podem, porque viver não é apenas existir, a vida tem de ter um significado em si mesmo, apenas um ser com consciência da sua existência pode afirmar que existe. Ah! Direis vós que os seres irracionais não têm consciência, logo não existiriam segundo o meu pensar, quando é inegável que eles existem... Tal argumento cai na falácia de partir do pressuposto que os animais irracionais não têm consciência de si próprios, quando é facilmente demonstrável o contrário. Vede que essa consciência se manifesta em vários aspectos da sua vida, desde logo no modo da sua apresentação, em muito depende do seu aspecto físico as hipóteses de assegurar a continuação da sua linhagem... Não será suficiente tal para demonstrar a existência de uma consciência, que lhes diz que devem cuidar do seu aspectos de modo a continuar com a sua linhagem? Mas para aqueles que acham que tal não será suficiente, sempre se dirá que quantas vezes não nos maravilhamos com actos, ou atitudes de animais irracionais idênticas as dos seres racionais? Direis vós que são actos resultantes de uma mera aprendizagem por imitação. Ao que contraponho dizendo que a aprendizagem, seja qual ela for, é sinal de uma consciência de existência, mas mais se dirá, por ventura os primeiros actos e gestos que um ser racional recém-nascido aprende, não são adquiridos por imitação? E ninguém poderá desmentir que esses seres têm consciência de si mesmos... Porque é que aqui isso é verdade e ali já não??? Porque na realidade é verdade nos dois casos que existe uma manifestação de uma consciência em formação, mas em que ambos os casos já existe a consciência de uma existência própria, individualizavel face aos demais membros do grupo, quer do ponto de vista dos restantes membros, quer do ponto de vista do próprio indivíduo; ele é individualizavel e individualiza-se...

         Mas isto é apenas um aspecto da existência, outro aspecto é o da qualidade dessa existência, problema diverso do primeiro, pois aqui já se pressupõe uma existência, para aqui chegarmos, temos que conclui que existimos, pois se concluímos que não existimos, não poderemos questionar a qualidade de algo que não existe. Será existir, uma vida sem sentido, em que erramos pela face da terra, procurando um rumo? Ou será viver, aquele existir, em que sabemos o que queremos e vamos em busca desse objectivo. Qual desses dois é o verdadeiro viver? Dir-vos-ei que o são ambos, a diferença reside no seguinte aspecto: enquanto no primeiro caso é um existir vazio, oco, sem sentido, sendo o seu teor nulo, o segundo é um existir carregado de sentidos, de emoções, de experiências vividas... É nisso que reside a essência do existir... só nesse sentido podemos dizer que Raven não existe, pois aquele corpo é apenas um receptáculo vazio, oco, sem sentir...

         Mas estamos a afastarmos do móbil que me levou a escrever-vos esta narração, voltamos para junto de Raven, fugi a estas minhas cogitações....

         Vede como o jovem Raven se afunda nas memórias, ainda recorda os passeios pelo campo com a sua amada, o seu amor em génese que crescia, apesar de imposto este prometia florescer, ainda lembra para sempre esquecer, e nunca mais recordar o seu gentil rosto... Vede como as coisas às quais ele não dava valor algum, são as que agora têm mais valor, e aquelas que ele recorda saudosamente.

         A noite morria nos braços do dia, o sol já despontava atrás das montanhas cobertas do gelo de Inverno, era tempo do homem transformar-se em corvo, a maldição de Raven manifestava-se pela primeira vez. O jovem olha maravilhado o sol a nascer, e o seu corpo a transformar-se, as penas começando a cobrir o corpo, substituindo a pele que antes lhe cobria o corpo, o bico que crescia, os braços que se formavam em asas, e as pernas em garras, o sol ainda acordava e dava os primeiros bocejos ensonados, já Raven havia transformado em corvo. E pela primeira vez sentiu o vento beijar o veludo das suas penas, era corvo, mas tinha consciência de homem...

         As primeiras tentativas de voar, mostraram-se infrutíferas... Apenas conseguiu dar pequenos pulos, que não se poderiam considerar voos, outras aves que se alojavam em alguma árvore vizinha pareciam rir e gozar com aquele corvo desajeitado, o seu interior sentia revolta, e ódio, porque??? Porque lhe haviam os Deuses dado vida, para lhe infligirem esta maldição??? Porquê??? O Destino corre por caminhos escondidos, procurando refugiar-se de quem o persegue, nas noites frias do fado... Passa por misteriosos vales e atalhos, toma rumos incertos e desconhecidos, para no final atingir o fim desejado por ele, e apenas por ele, e por mais ninguém... Pensamos que somos donos do nosso viver, que dominamos o nosso acontecer, mas quando menos esperamos, algo nos mostra o quanto errados estávamos, e num ápice o tapete que se nos estendia diante de nós desaparece, e caímos desamparados no abismo que é a nossa vida. Esse abismo omnipresente, apenas escondido pelas ilusões do nosso viver, que espera o momento ideal, para se descobrir e nos engolir na sua ânsia devoradora, de modo a que nunca mais fujamos do seu interior, para sermos devorados no seu eterno apetite voraz...

         Como é estranho toda esta letargia de viver e ser vivo! Como pode alguém de noite ser homem e de dia ser corvo, que maldição esta? Que estranho feitiço havia nesse pacto entre a terra e os céus, nem homem, nem corvo, e no entanto sempre os dois presentes, numa miscegenação constante e permanente.... São estes os estranhos rumos do destino, soprados por ventos invisíveis, qual vela manejada por mãos hábeis e destemidas, que enfrentam os ventos que sopram e rasgam o ar, com a sua força indomável, que destroçam tudo o que se opõe à sua vontade indomável, assim é o destino, que em constantes círculos acaba por chegar a algum porto desconhecido, em cuja sombra encontraremos novos e insondáveis mistérios.

         Mas voltemos para o nosso corvo que tenta voar, mas em vão tentava soltar as suas asas ao vento. Desajeitado tentava... E, novamente, voltava a tentar... Em seu redor, as aves mais pequenas, pareciam jocosas, rindo da sua figura desajeitada, passando por ele em voos acrobáticos, mas na sua dor e frustração a ela não ligava, apenas pensava no que se havia tornado, e com que finalidade haviam dos Deuses concedido o privilégio de viver, para logo depois o condenar a esta prisão, a esta maldição...!!!

         Cansado de tentar e falhar, chegou à beira do princípio, com o coração cheio de dor e mágoa, olhou o fundo do abismo, e desejou sentir o seu frágil corpo esmagar-se contra aquelas pedras, e a sua vida retomar às cinzas do passado, para junto dos seus entes queridos, para as cinzas de onde nunca devia ter saído... Olhou uma última vez para o horizonte, observou o seu azul celeste, recreio de outras aves, habituadas aos seus desígnios... Vislumbrou, com nostalgia, o verde prado, lá no fundo do abismo, que dormia junto ao fugidio rio, que levava as águas do passado, que se transformarão nas águas do futuro... E cansado da sua angústia, da sua solidão, abriu uma última vez as asas, e num pequeno voo lançou-se para o fundo do abismo, sentiu o ar bater nas suas sedosas penas, sentiu a pressão do ar tentando resgatá-lo ao destino que parecia certo, e fechou os olhos... Estava para breve o seu fim... Mas, mas uma vez não havia chegado a sua hora, a sede de vingança não tinha sido aplacada, Raven tinha de viver, e suas asas sentiram o doce toque do vento, desse vagabundo sussurrante, que lhe dizia: “voa”, e Raven voou!

         A queda parara, sentia o seu corpo erguer-se para o azul dos céus... Abriu os olhos, e diante de si, apenas a vastidão do horizonte, sentia-se livre, no seu pensamento, da sua dor, da sua angústia.... Olhou para baixo e viu a terra que lhe dera vida... Ainda soltava os fumos da morte, e mesmo distante dela, sentia o cheiro a morte, a carne queimada, pelo fogo do inimigo... O inimigo! Quem seria desconhecia, sentia uma raiva e uma necessidade de vingança, contra algo ou alguém que desconhecia, bem podia ser invisível, bem que podia ser ele mesmo, pois não o sabia, mas havia de o descobrir.

         Mas apesar de livre sentia a falta de algo, sentia o seu interior vazio, a sua alma oca... Era certo que agora toda ela era sede de vingança. Desejo que encontrar os responsáveis pelo destino do seu povo, queria vingar a morte daqueles que amava. Mas sentia, que para além disso... Lá no fundo... nada mais existia... Tudo o resto era nada... um enorme vazio que se estendia por toda a amplitude que era o seu espírito. Como podia ser? Existira apenas ele para vingar o sangue derramado? E depois disso? Morreria? Viveria? Se viver, seria mais um ser sem sentido, um receptáculo vazio e oco, despejado de significado, que viver seria esse? Que viver é este? Ahhh!! A dor da incerteza, a dor do vazio!!! Como dói... Todos nós, em algo momento, sempre desejamos não sentir, perder os sentimentos que nos impelem a fazer o que não queremos, mas e quando os perdermos? Quando sentimos que nada existe? Ficamos confusos, perdidos nessa confusão, procurando a solução... Mas não a conseguimos encontrar, porque não nos conseguimos encontrar a nós próprios, e perdidos no deserto que somos, vagueamos pelas dunas de um existir vazio, e apenas a areia que é o passado encontramos, e ao longe vislumbramos a miragem que é o futuro, a miragem que nunca chegara, e sedentos de vida, ressequidos de sentir, morreremos nas areias dos presente...

         Pela primeira vez desde que renascerá sentia-se bem... Sentia o vento conduzindo-o por rumos insondáveis, sentia o seu pensamento vazio, apenas a sensação de liberdade que era voar lhe enchia o ser, toda a dor, toda a mágoa havia passado... Brincava nos rumos do vento, desafiava as correntes de ar, era ele agora que ria daquelas jocosas aves que se haviam divertido às expensas dele... O Homem havia sido enterrado fundo no corvo, apenas o corvo agora estava vivo, o Homem dormia... Com a sua dor, com a sua mágoa... Afinal a maldição havia relevado ser uma recompensa, podia descansar da sua dor, que enquanto Homem, não podia deixar de sentir, mas enquanto corvo era livre para se deixar conduzir pelo vento, para ser ele a conduzir o seu rumo, e nessa contradição aparente, viajar por destinos desconhecidos, procurar descobrir o mundo que se estendia perante si...

         Sempre via o clã... o grupo como o seu mundo, nada mais exista para além dele... Apenas nele encontrava a segurança, pensava iludido que ali estaria seguro e nada nesta vida o poderia atingir nem a ninguém enquanto estivesse no clã! Era o seu mundo... a sua vida... Ilusão! Mera ilusão... O destino havia de lhe mostrar como estava enganado... que nunca podemos estar seguros de estar em segurança. O que é a segurança? No fundo o que é? É sentir que nada nos pode atingir, ou aos que amamos? É sentir que nada nos ameaça? Penso que sim... Que é isso que todos nós pensamos, que todos nós procuramos... É por isso que nos agrupamos em sociedades, em grupos, em comunidades.... Procuramos fugir às agressões superiores às nossas forças individuais, e no grupo, na união de uma comunidade de comunga de valores e ideias semelhantes, encontramos a segurança.... Mas esquecemos algo que nunca devíamos descurar... Essa segurança nunca é absoluta... Como tudo nesta vida... Essa segurança é relativa... Pois desde logo, temos as agressões no seio da comunidades, perpetradas por elementos dessa comunidade, e surge a necessidade da sociedade reprimir, punir e reabilitar o indivíduo para a sociedade; mas por vezes o indivíduo perdeu a comunhão de valores... Já não se enquadra... Sente que a sociedade o marginalizou, que o explorou, e procura-se vingar dessa sociedade, e refugia-se numa sociedade alternativa, cuja semente se aloja no coração da sociedade mãe, e como um cancro a corrói, cresce e procura destruir o corpo que lhe dá vida... Mas mesmo que, numa pequena sociedade, rudimentar, pouco organizada, como era o clã dos Corvos, em que esse tipo de ameaça não pendia sobre a comunidade, existe outro tipo de ameaças, exteriores à comunidade... Ameaças de forças superior à união, que esmaga toda a oposição que se lhe depara. Eis a razão da segurança ser relativa.... Vós quereis segurança absoluta? Então tende a ousadia de morrer... Pois só a campa é um lugar seguro, pois enquanto vivemos sangramos...

         E mesmo esta, mesmo a morte não oferece uma segurança absoluta! Interrogai Raven, e vede a resposta por ele dada! Vende que pensava esse corvo negro que havia encontrado o repouso eterno, mas por desditoso capricho dos Deuses, havia de renascer... Segurança? Quereis Segurança absoluta? Eu dou-vos uma ilusão! Apenas isso... nada mas do que isso vos poderei dar.... Procurais soluções a quem as não tem... Procurais respostas, a quem só tem interrogações... Procurais a verdade a quem apenas tem ilusões para vender! Todos procuram a verdade... Todos querem saber a verdade... Já vos haveis perguntado se a verdade não existe? Claro que tem de existir! Dizeis vós. Pois tendes de o fazer, não é? Que sentido faria a vossa vida, toda ela dedica, a procurar a verdade, a tentar descobrir o sentido da vida, e descobrir que ele não existe, que a vida não tem sentido! Que é apenas um jogo de dados, lançados por uma mão misteriosa e invisível, que guia o nosso destino de forma aleatória, e do qual nos não temos controlo? Ou será que existe? Que sei eu? Como vos havia dito, não sei...

         Eu sou como o corvo cuja estória vos narro, sem sentir... apenas me deixo guiar pelo impulso da minha pena, apenas vos conto os factos, as cogitações, os receios, os sentimentos... Verdade?! Mentira!? Realidade ou Ficção, futuro ou presente! Apenas a vós o cabe decidir... Eu apenas vos conto as palavras que me fogem da minha imaginação febril... Fazeis delas o que quereis, e se quereis que elas sejam reais, elas serão reais... Pelo menos para vós, e quem sabe... Quem sabe, se um dia não acordeis e sentis que para além de serem reais no vosso imaginários, elas soltaram amarras e zarparam rumo à realidade feita ilusão, e a ilusão transforma-se em realidade; mas se quereis que elas sejam ilusão, ilusão elas serão... e destas páginas elas não passaram... Mas da vossa mente não saíram, e se repetirão até ao infinito, até as saberes de cor, e quando pensares que as haveis esquecidas, eis que elas aparecerão diante de vós, vestidas sobre a capa de uma realidade, que julgais impossível, e nesse instante as reconhecereis como tal...

         Louco.... Podereis dize-lo livremente, nada mais passam do que palavras de um louco; admito que o sou, louco por pensar que faço sentido, louco por pensar que posso sentir-vos, sentir o vosso sentimento a ler estas palavras... Talvez o seja, como disse, não tenho certezas, apenas dúvidas... Mas do fundo da minha insanidade, vos penso, lede estas páginas, mesmo que para no momento seguinte as esqueceis mas lede a estória deste Raven, que de Homem foi feito corvo, e olhai para o fundo, para o sentimento, porque as palavras nada são do que meros símbolos sem o sentimento que se esconde por trás delas... E então depois, podereis concluir, pela realidade ou ficção das palavras! Pela loucura ou Insanidade dos seus escritor...

         Mas mais uma vez estamos a afastar-nos dos fitos do nosso conto.... Voltemos para os verdejantes campos junto ao rio, para o azul do céu, onde voa aquele corvo negro, e vejamos por onde anda esse místico ser, em que nuvem se esconde a sua sombra, em que vento ecoa o seu falar....

         Mas vede que Corvo traiçoeiro, não o podemos deixar um pouco sozinho, que logo nos procura fugir, pensado nós que o iríamos encontrar saboreando os cambiantes dos ventos, e eis que ele se encontra descansado sobre um ramo de uma velha árvore que descansa o peso dos seus anos junto ao ribeiro. Vede como é tranquilo o sono dos justos, eis que ele dorme repousado, ignorando a noite que se aproxima, tranquilo dorme, qual recém-nascido. E na realidade o que ele é se não um recém-nascido? Acabado de nascer da morte, do sangue dos campos, em Homem se tornou, mas em vida, nada mais do que horas têm...

         De facto, a noite chegava misteriosa como sempre, trazendo consigo a escuridão das trevas, o frio gélido da noite, que se espalha sobre os campos verdejantes, cobrindo com o seu manto negro toda a imensidão que se estendia pelo horizonte... Mas para o nosso corvo era mais do que isso... Além da transformação, da dança entre luz e escuridão, a mudança, a mutação que se opera nesse corvo é muito mais profunda... E apesar de tal, não deixa de estar associada a esse mesmo simbolismo. Pois tal como a escuridão da noite sucede à luz do dia, também a noite, faz com que a alma no nosso corvo se enegreça, e aquela paz que sentia quando voava, seja substituída, pela dor e pela mágoa das consciências da perda dos seus entes queridos.

         E tal como as noites se sucedem aos dias, eternamente, incessantemente, também esta mutação se operaria nesse corvo, tempo após tempo, dia após dia, noite após noite, até aos fins dos tempos, até à morte... Se algum dia essa chegasse! Facto de que agora duvidava... É difícil para alguém que morreu e renasceu das cinzas da sua própria morte acreditar que algum dia morrerá... Deixa-se de acreditar na morte, no descanso eterno, começa-se a sentir perdido na própria dor... E acredita-se que todos os dias se morre, para à noite renascer, e a cada noite que passa, a dor aumenta, e o desespero cresce, e pensa-se quando isso acaba... quando... E a resposta surge como um eco perdido no nosso interior: “nunca”...

         O pôr-do-sol nasceu e logo padeceu nas mãos da noite, fruto da cúpula fugaz entre dia e noite, nascido do amor do sol e da lua, que por escassos momentos se encontram, amantes afastados pelo feitiço do tempo, mal nasce logo falece, nos braços de sua mãe... A noite estava instalada, e chorava a morte de seu filho... Soltava doce lágrimas de dor, escondida atrás do seu manto negro... O Corvo que dormia no ramo do velho carvalho havia desaparecido, no seu lugar, no chão verde jazia agora um Homem, que acordava da letargia da sua mutação... Já era a segunda vez que sentia este fenómeno, mas mesmo assim não poderia deixar de se sentir supreso; pensara que talvez os destinos que o regem o deixassem ser corvo para sempre, como o desejava agora, puder ser livre nas asas do vento, e partir pela noite, escuro como ela, invisível sobre a capa da sua madrasta que auxiliara a terra e os céus no seu parto... Como desejava... Mas não, tinha de ser Homem e andar sobre a terra. O voo diurno havia retirando algum das suas forças, estava cansado e com fome, tinha de procurar comida...

         Junto das árvores que bebiam o fresco néctar que rio lhes ofereciam recolheu velho ramos que jaziam inertes e mortos sobre o tapete verdejante do prado, e com a perícia ensinada pelo seu pai, furto de ensinamentos imemoriais, transmitidos de geração em geração, criou luz e calor, e por momentos sentiu o calor proveniente daquele brilho misterioso, que nascia da noite, invadir-lhe a alma e reconfortar-lhe os pensamentos; mas mesmo assim ainda sentia fome... Teria de caçar ou pescar, teria de matar para sobreviver... A esta hora seria difícil encontrar caça alguma por aqueles prados, os poucos habitantes daquelas paragens dormiam agora, seguros nos seus refúgios, sempre poderia tentar descobri-los, mas mais depressa morreria de fome que ter sucesso em tal empreendimento... Também poderia tentar a sua sorte e vaguear pelos campos, certamente, um ou outro habitante teria descurado a chegada da noite, e iria ainda a caminho do seu refúgio, mas sem instrumentos de caça adequados, seria improvável alcançar o sucesso nessa perseguição... A única opção que lhe parecia credível seria mergulhar os seus pés no rio e tentar acordar algum peixe adormecido...

         Tirou a sua capa pesada e colocou-a sobre a relva húmida pelo orvalho nocturno, tirou da bainha a sua espada e meteu-se dentro da água gelada, sentiu um arrepio de frio percorrer-lhe o corpo e sentiu vontade de fugir dali... Mas a fome venceu, e lá continuou a sua empreitada... Após as primeiras tentativas infrutíferas pensou em desistir, e sentiu as forças abandonarem o seu corpo, pensou em deixar-se levar pela corrente, e deixar que o gigantesco mar o acolhesse no seu seio, mas algo no seu interior impelia-o a continuar, e com razão, pois haveria de ter sucesso no seu empreendimento...

         Com o fruto da sua pescaria cozinhando ao lume da sua fogueira, sentiu o calor secar-lhe as roupas, mas outro frio, algo mais gélido tomou-lhe de assalto a alma. Sentia-se só, sem alguém com quem partilhar os seus pensamentos. Sentia que era o único ser que habitava aquelas planícies, sentia a necessidade de contacto com seres da sua espécie... Sentia a falta do clã... Das conversas em redor das fogueiras... Do calor humano; das carícias da sua amada... Era isso que mais sentia falta da sua vida anterior... De certo sentia falta dos seus pais, dos seus amigos, mas essa falta era recompensada pelas recordações dos momentos de felicidades vividos com eles, mas as saudades da sua amada, das suas palavras, das suas doces carícias, nada poderia substituir, e cada recordação dela, em vez de obviar a tal, parecia agravar o seu estado, e fazer com que mergulhasse na mais profunda das melancolias....

         O Manto negro que cobria o céu parecia dissipar finalmente, já se consegui ver um pouco do brilho do firmamento celestial, ao longe conseguia-se descobrir no negro salpicado, um ou outro brilhante, que cintilava no longínquo firmamento. E olhando esses brilhantes, Raven lembrava os olhos da sua amada, perdida para sempre nas cinzas dos campos, onde tinha sido vertido o sangue daquela donzela virtuosa, que com o seu canto de cisne encantara os seus ouvidos, com doces melodias, e que agora recordava na angústia da saudade que o atormentava.

         Como é curioso... Julgamos que aquilo que amamos e aqueles de quem gostamos estarão sempre ao nosso lado, aconteça o que acontecer, mas olvidamos que existem acontecimentos que não controlamos e nem podemos controlar, e quando esses mesmos nos levam essas pessoas, o nosso interior chora lágrimas de sangue por eles... E a saudade agrava-se a cada dia que passa... A nossa dor aumenta, até que se funde no nosso ser, e deixamos de separar o nosso sentir, da dor que nos abraçou, e da saudade que nos embala o viver, e unidos num só, renascemos num único e misterioso desígnio... E assim, mortos de sentimentos, vamos vivendo, perdido nas ondas dessa saudade, naufragados na dor dessa perda... Eis como se sentia Raven... Eis o que era Raven... Saudade... dor... Angústia... Amor... Paixão... Vingança... E Morte...

         Embrenhado nos seus pensamentos, Raven olvidava as mudanças que se operavam na noite escura, que já não o era mais, parecia que o dia rejuvenescia e que a noite fugira, o dia parecia eterno, que estranho feitiço era este? No céu lá bem no alto, brilhavam duas luas, bem cheias, redondas e belas, que com o seu halo misterioso enfeitiçavam todos os seus súbditos que maravilhados, assistiam a este espectáculo raro, um bailado que apenas se relevava em cada milénio, um raro bailado entre as duas luas que escudavam aquele planeta, que nas suas órbitas contrárias se encontravam ocasionalmente, proporcionado aos seus observadores uma visão de rara beleza.

         Mas eis que aquela alma sofredora desperta da sua letargia, e erguendo os seus olhos aos céus depara com aquele raro espectáculo. E a sua alma dorida e magoada sento o seu coração encher-se de alegria... Como é maravilhoso ver um ser que sofre e padece num momento, e perante um espectáculo oferecido pelos Deuses, esquece a sua dor e a sua mágoa e se maravilha com a tal bailado...

         Naquele momento Raven sentiu-se privilegiado em poder assistir àquele bailado celestial, uma misto de beleza e mistério fundidos num momento singular... Mas logo a saudade o assaltou, e soltou suaves lágrimas de dor e paixão. Pensou como a sua amada adoraria ter visto aquele espectáculo; relembrou as estórias contadas à volta da fogueira, dos mais velhos, contadas de geração em geração, passadas de pais para filhos, cada um com seu toque pessoal, dando-lhe um pouco mais de mistério e mito. Um das versões mais correntes dizia, que as duas luas seriam dois namorados, nascidos em clãs diferentes e rivais, que o destino quis que se amassem e o seu amor fosse proibido. Contavam os anciãos do clã que em tempos idos, perdidos nas brumas da memória, onde havia sido o lar dos Corvos até à sua destruição, muito antes do clã se ter ali estabelecido, habitava nas duas margens do rio dois clãs diferentes, apenas divididos geograficamente pelo rio, separava-os centenários de rivalidade; mas por desditoso capricho do destino havia querer que duas jovens almas se apaixonassem e vivessem intensamente o seu amor proibido. Escondidos pelas sombras jurariam amor eterno, pelas estrelas que os banhavam prometeram que mais depressa se tornariam poeira levada pelo vento que amar, e serem tomados por outra pessoa. Conta a lenda que certo dia, que encontrando-se estas pobres almas em idade de casar, seus pais anunciam ao clã os respectivos casamentos. Os jovens perdidos na dor da separação, em lembrados da promessa que haviam feito um ao outro, lançam-se às águas do rio, que por capricho do destino as suas águas nessa noite levavam selvagens, correndo indomáveis para o mar, ambos afundaram-se num sono eterno abraçados numa paixão eterna. Nessa noite a lua desapareceu e no seu lugar apenas um halo negro subsistia.

         Conta ainda a lenda, que uma raio de fúria desceu dos céus e fulminou os dois clãs despedaçando as duas comunidades por tão ignóbil traição e no local onde antigamente habitavam duas comunidades florescentes, apenas o vazio reinava. Contam ainda os anciãos que nessa noite duas luzes saíram das profundas águas do rio e se elevaram rumo aos céus, e no local onde antes jazia um halo negro, deixado pela partida da lua, erguiam-se duas luas cheias, que bailaram toda a noite até ao raiar do sol... Diziam os contos que foram as almas daqueles amantes que se juntaram, e de mil em mil anos se juntavam novamente para aquele bailado, e assim foram as luas baptizadas de Calipso e de Efreneida, os nomes daqueles dois apaixonados, que pelo seu amor morreram, e que por esse mesmo amor se ergueram aos céus, e no firmamento astros se tornaram, espalhando a luz da sua paixão sobre todos os habitantes deste mundo...

         Cada vez que relembra a estória, ouvida pela primeira vez da boca de seu avó, as lágrimas correm-lhe fugidias pelas faces marcadas pela dor, da recordação dos momentos que passara com ele... Ainda lembra aqueles fins de tarde ao por do sol, em que sentava nos seus joelhos, quanto infante era, e via as aves passar em voos sucessivos sobre o rio procurando caçar algum peixe distraído que se aventura-se na superfície espelhar do rio, procurando o alimento para as bocas famintas que esperavam ansiosas por um pedaço de comida que saciasse a sua voracidade... Relembrava em vagas sucessivas, as imagens velejantes que partiram para rumo incerto, e de novo a mágoa e a dor instalam-se no seu coração... Lágrimas correm num rio sem represas, rumo ao chão banhado pelo sangue das vidas perdidas em lutas efémeras e sem sentido...

         Recordações... Pedaços de um viver vivido que guardamos no baú das memórias, para mais ninguém têm valor a não ser para nós, e mesmo que comungadas por diversas pessoas, mesmo assim não terão o mesmo valor para todos os membros, cada um lhe atribuirá uma importância própria e singular, fruto da vivência singular de cada um. É esse cunho pessoal que torna cada ser irrepetível, cada ser que nasce, cada vida que se perde, é única e singular, impossível de ser copiada. A substância poderá ser igual, semelhante, em tudo idêntica, mas o seu espírito, a sua alma, a sua personalidade, nunca poderá ser igual, pois cada aspecto, cada modo de ser, cada resposta a estímulos que a realidade nos dá, depende da vivência de cada um, da experiência do saber feito, de cada minuto, segundo, ou instante vivido por cada um....

         Vende este jovem a que chamamos Raven, quando morreu era um jovem singelo, inocente, desconhecia a dor e mágoa a que podia um ser sujeitar-se, e quando renasceu, apesar do corpo ser o mesmo, em tudo igual, pois renascera das cinzas tal como morrera; no entanto, a sua alma havia-se modificado, algo mudará. A inocência que em tempos idos bailava nos seus olhos, dera lugar ao vermelho da vingança... O corpo podia ser o mesmo, até as recordações eram iguais, mas o Raven de agora não era, certamente o Raven dos tempos idos... Aquele Raven que defendia a paz, que repugnava o uso das armas a não ser para caçar, que procurava a justiça das soluções, que usava da palavra para dirimir os diferendos, dera lugar ao Raven sedento de sangue, ao senhor da guerra, que desfere o golpe primeiro e só depois pergunta se estava inocente ou culpado...

         Mas alheios aquele dor, aquela mágoa, aquele ser, os astros continuavam a sua misteriosa dança, maravilhando os campos com a sua luz celestial, fazendo da noite dia, parecendo querer descer sobre o rio para saciar a sede resultante daquele bailado milenar e místico. Como que parecendo confirmar a lenda, pareciam dois amantes, saudosos, separado pelo peso dos séculos, bailam pela noite fora, sucedendo-se numa dança misteriosa e única, que maravilha todos quanto a observam; apenas Raven estava noutro mundo, num mundo de mágoa e dor, no qual os sentimentos de felicidade eram desconhecidos, apenas recordações de um passado distante, mais pareciam ilusões que nunca foram vividas, mas apenas gravadas no cérebro, tudo pareciam vazio, sem sentimento, parecia distante, que não pertencia a ele, sentia que aquelas recordações já não eram suas, e cada mais tempo que vivia, mais sentia a distancia entre o presente e o seu passado. As recordações que ainda de manhã o assaltavam, pareciam mais distantes, e pertencentes a outro ser que não a ele, sentia que nada lhe diziam respeito, nem mesmo as recordações acabadas de sentir, de sua amada, do seu avó, pareciam já ser dele... Que estranha mutação se operou numa lapso de um instante? Que Estranho sentimento era este que o invadia... Cada vez mais se sentia vazio... Cada vez mais sentia a sede de vingança, em pouco tempo pouco mais sentiria, o seu passado anterior, seria apenas uma mancha negra, uma vazio eterno... Para Raven apenas a dor, a mágoa e a sede de vingança existiam, a partir de agora apenas sabia que tinha de vingar os Corvos, não sabia o porquê dessa necessidade, apenas sentia o instinto animal que o levava nessa busca... Apenas sentia a sede de sangue... De sangue dos seus inimigos... Mas não sabia quem eles eram... Mas sentia a necessidade de os procurar... De os destruir... O seu interior clamava por vingança, o seu coração tinha sede de sangue... E ele que apenas queria descansar em paz, tinha de continuar esse caminho tortuoso, que só levava à destruição... à destruição dos seus inimigos, dos seus amigos, e de si próprio....

         Mas por mais forte que seja a dor nunca conseguirá vencer o cansaço, este acaba sempre por vencer, e fatigado pelo esforço desse dia, e pela torrente de emoções que sentiu e que viveu nas poucas horas de vida, adormeceu ao calor da fogueira, depois do seu repasto, e dormiu um sono reparador... Mal deu conta do bailado que continuava a desenrolar-se sobre a sua cabeça, e que a noite passava e que o dia não tardava em acordar...

         Mas o tempo não perdoa, esse traidor que está sempre pronto a denunciar-nos, esse delapidador das alegrias, esse esconjuro da tristeza, e o dia chegou, e mais uma vez o Homem corvo volto a ser. Á medida que as transformações se operavam sucessivamente, o jovem guerreiro ia-se habituando a tal facto, começava a sentir que era natural, algo de inevitável. Quão verdadeiro era esse pensamento, pois de facto, apesar de desconhecido de nós, seres limitados pelos nossos conhecimentos, pelo imaginário comum, ignoramos as mutações e transformações que a natureza pode operar, os mistério que ela encerra.... Acto anormal, fruto do fantástico, facto sobrenatural direis! Falso! Replicarei eu...!!! Nada de mais falso que afirmar tal.... Seja fruto do desígnio dos deuses, seja fruto da vontade da natureza... Tal transformação é uma facto natural, apenas se encontra para além da nossa compreensão, entender como tal mutação se opera... Pela simples razão de a nossa compreensão ser limitada, não podemos dizer que um determinado facto é sobrenatural, quando ele não o é... Atribuindo-lhe origem divina ou não, apenas servirá para explica-lo face aos nossos limitados paradigmas, mas tal nunca significará que o facto seja sobrenatural, um desvio à natureza... Nunca....

         Operada a transformação, o renovado corvo abre as suas plumas negras e parte em direcção ao sol acabado de acordar, ofuscando com a negritude das suas asas o brilhar daquele astro, projectando sobre o solo verdejante a sua sombra, atemorizando os pequenos habitantes das planícies, espalhando o pânico sobre o caminhante mais distraído, que entrara naquele vale de morte, onde pairava ainda o cheiro do sangue derramado pelas lâminas sedentas de ceifar as vidas, o odor fétido a morte penetrava como navalhas afiadas ferido as sensíveis narinas daqueles que ousavam penetram no interior daquele vale destruído. O solo ainda exaltava o ar quente das almas queimadas naquele palco de morte, e aquele corvo pairando no ar, sedento do sangue dos seus inimigos, pairando, esperando... Esperando por quem cuja identidade desconhecia, esperava um indício, um mero sinal que lhe indicasse que aquele era o objecto da sua ira, e que sobre ele poderia recair toda a sua vingança, toda a sua dor e mágoa...

         Mas o tempo passava, e nem o mais pequeno dos seres se atrevia a penetrar no seio daquele vale, vendo o vigilante das almas vageantes, que pairavam invisíveis sobre as pedras manchadas do seu sangue, ansiando pela vingança, esperando o dia em que a sua dor fosse realizada na morte dos seus agressores, e assim poderem partirem para a viagem eterna rumo ao descanso infinito...  Raven esperava, sentido o vento nas suas asas, sentido um pouco da liberdade que lhe é concedida, esperando que o dia nunca acabe e a noite nunca chegue, ou que algum sinal lhe seja relevado... Mas os tempo não para, e a noite chega novamente, e os sinais que o levem rumo ao seu destino escasseiam e rareiam...

         A noite chega furtiva e leda, com o seu misterioso encanto, os dois amantes que bailaram na noite anterior, continuavam os seus caminhos separados, despedindo-se em gestos mútuos de saudade, cada vez menos brilhantes, diminuindo o rubor da noite passada, começando a esconder as suas faces atrás do manto negro da noite. Todos os habitantes do vale, que ainda ousavam passear por aquelas terras, há muito haviam regressado aos seus refúgios, procurando fugir aos perigos da noite, apenas os mais distraídos ou os mais corajosos ousavam expor-se à face negra da noite...

         Na orvalhada relva jazia imóvel o corpo de Raven, fatigado por mais uma mutação recuperava forças, enquanto pensava que a sua continuação naquele local seria inútil... Nada mais havia ali a fazer, deveria partir, explorar o mundo, seguir o rumo daqueles que haviam destruído a sua vida e o haviam transformado no que era agora... Mas que rumo seguir? Seguir pelo curso do rio até à sua nascente, de onde tinha visto nascerem as hordes inimigas que devastaram e desbarataram a vida aos membros do seu clã? O mais certo seria encontrar outros povos, que estando inocentes, sentiriam o peso da sua ira, pois cego de raiva não conseguiria discernir a sua inocência, o mais provável seria fazer cair a sua ira sobre o primeiro povo que encontra-se, inocente ou culpado...

         Deveria seguir o rumo do rio até à sua foz? Poderia correr o mesmo risco que subindo até à nascente... Mas pensando melhor... Esse risco poderia não existir verdadeiramente, pois não era verdade que esse povo que havia destruído o seu clã era sanguinário? O mais provável era encontrar um rasto de destruição semeado por esse mesmo clã! E assim poderia ter a sorte do destino e conseguir alcançar aqueles por quem ansiava... Já podia sentir o sangue deles correr pelo gume do seus sabre, já sentia o cheiro das suas vidas esvaindo-se, ouvia no seu imaginário os gritos de clemência daquelas almas condenadas... Tal como ouvira os gritos dos seus entes queridos, e tal como eles haviam feito, assim ele iria fazer... sem perdão, a morte!!!

         Condenados estavam de factos essas almas errantes, que por onde passavam semeavam a morte e a destruição, esse povo guerreiro, que tinha na sua génese a semente do mal... E sem clemência ou perdão, aplicavam a pena de morte a todos aqueles que se deparavam no seu caminho, qual fosse a cor, o credo ou a raça... O seu destino era único: a morte! Mas a partir do momento em que Raven nasceu a sua sentença estava assinada, o juiz supremo havia reunido em concílio, e havia decidido: tinham de morrer! Quem pelo ferro vive, pelo ferro deve morrer! E nasceu Raven, o carrasco dos Deuses, o anjo vingador, cuja missão era apenas uma: matar.

         Mas mesmo Deuses esquecem que o destino é supremo e que mesmo esse jovem rebelde lhes escapa ao controlo sempre que o entenda, e nem desconfiavam o que este lhes preparava... Haviam criado Raven apenas como instrumento das suas vontades, e esperavam que termina a sua tarefa, finda a sua missão, o teriam de volta aos seus desígnios, como iludidos estavam, ao darem-lhe vida, haviam-no perdido para sempre, pois uma força mais poderosa que eles próprios o havia de resgatar ao seu fatídico destino...

         Se até o destino foge ao controlo dos Deuses, como podemos ambicionar nós, meros mortais, controlar o nosso fado? Não podemos... Julgamos que o controlamos, mas apenas vivemos uma ilusão... Todos os dias acordamos e pensamos: somos donos do nosso destino. Mas pergunto-vos: sois vós verdadeiramente donos dos rumos das vossas vidas? Quantas vezes não haveis vós estado confusos sobre a vossa situação? Quantas vezes não haveis vós sentido impotentes para travar o rumo dos acontecimentos, que vos engoliam, e vos devoravam, e vós impotentes para lhe resistir? Então como podeis algum dia afirmar que sois donos do vosso fado? Pois quando menos esperares esse jovem irrequieto se revoltara contra vós, e vos derrubara...

         Mas regressando para junto do nosso jovem torturado, esquecendo as cogitações em que este narrador tende a perder-se, e pelas quais peço, desde já, o mais humilde perdão, pois é mais forte o sentimento de vos dizer o que vai na alma e dispersar por vale e atalhos esquecidos do pensamento. Peço que me perdoeis essa indiscrição... Mas voltando ao fito que vos traz a ler estas palavras...

         Raven havia tomado a resolução... na manhã seguinte, enquanto corvo partiria rumo à foz do rio, pela primeira vez iria sentir o sabor do mar, e o cheiro salgado das lágrimas das noivas dos marinheiros perdidos para os braços do mar... De dia velejaria pelas ondas do vento, invadido pelo sentimento de liberdade que o enchia quando voava livre pelas correntes de ar que o elevava; e de noite descansaria, caçaria o alimento que lhe permitiria sobreviver às agruras das constantes mutações, e ao desgaste da viagem... Estava decidido, partiria ao primeiro ao primeiro raiar do sol, assim que fosse novamente corvo...

         A manhã chegou radiante. No ar dormia uma ligeira neblina, que enrolada na suave brisa que se fazia sentir, brincava com os ramos das árvores que se espreguiçavam ao sol acabado de nascer. Raven acordava, desta vez como corvo, já nem havia sentido a transformação que se havia operado, já não sentia o cansaço dessa mutação... Também já não lutava contra ela, agora auxiliava e colaborava nessa luta interior, que se abria a cada nascer e pôr-do-sol...

      
        Sorveu o ar matinal, e olhou os primeiros raios acabados de nascer, o dia estava radiante, ergue os olhos para o céu, abriu as asas, e elevou-se em direcção ao azul eterno, e partiu...

          
      No céu irrompe pelo azul celeste uma negra sombra, fria como a noite, invisível como o orvalho que cai imperceptível nos braços da verde vegetação que se aninha nos solos desertos. Raven voava, inebriado nos seus pensamentos procurava o sentido do seu fado, perdido na angústia de uma passado que se impunha com toda a força de um sentimento de vingança... Como clamando pelo sangue dos seus inimigos... Havia decidido seguir o curso do rio e perder-se nos seus caminhos, seria livre mas sempre aprisionado a um destino... Pobre corvo solitário que cruza dos céus azuis... Tal como as suas penas negra é a sua alma, escura é a sua existência... Ah! Quem o visse livre a voar no céu, com o seu porte imponente, ousaria ser livre como ele, mas poucos adivinhariam como aprisionado se encontrava a sua alma, como preso se sentia aquele ser... As correntes da vingança prendiam-no ao passado de dor e tristeza, as grilhetas dos gritos dos seus entes queridos ecoavam no seu cérebro entoando dia após dia, hora após hora, clamando, gritando por vingança, atormentando, pressionando, aniquilando a pura essência de um ser puro e bondoso por nascença, empurrando-o para o abismo da solidão, da mágoa e da dor...

         Curiosos planos nos tecem os Deuses, moldam e brincam com as nossas vidas como barro que se molda, se parte e se torna a moldar, criando à sua vontade os caminhos porque se rege o nosso fados, mas há caminhos e destinos que até eles fogem ao controlo dos Deuses... Raven, o corvo sanguinário, nascido do concubinato entre céu e terra, irmão do trovão, primo do vento, brinquedo dos Deuses...! Nada mais seria do que um mero brinquedo, não fora esse rebelde que se esconde nos sítios mais fundos, mais imprevisíveis, esse sentimento mágico e nobre que nem os Deuses controlam... Seria o filho rebelde de Adónis e Afrodite que se intrometeria no jogo e mudaria as regras... Quando pensamos que estamos perdidos no labirinto de nossas vidas, perdidos no escuro, haverá sempre uma ténue luz que nos guiará e nos ajudará a encontrar o caminho.... Nunca olvidais que essa luz existe, pudemos passar uma vida sem a ver, mas quando precisamos dela, eis que ela surge vinda do nada... O que fazemos diante dela caberá a cada um de nós decidir! Mas atentai as palavras deste louco que vos conta esta alucinada estória fruto da sua febril imaginação, ouvi as palavras desta insana pena, pensai bem antes de decidir, pois o vosso futuro e toda a vossa vida dependerá da vossa escolha...! Há quem abrace essa luz com toda a sua alma e se queime na chama do seu ardor, mas mesmo assim sobreviva à dor e seja infinitamente feliz; outros há que de mais moderados serem preferem ser mais cautelosos, mas esse no entanto nunca conheceram todo o esplendor dessa luz; por fim outros ainda há, que pura e simplesmente ignoram-na e vivem as suas vidas na total escuridão...

         De certo já haveis descoberto que vos falo de Cupido, filho de Afrodite e de Adónis, jovem arqueiro rebelde, que enfeitiça os enamorados, esse jovem por cuja culpa foram travadas batalhas milenares pelo amor...! O que se não faz por esse sentimento...? Dizei-me...? Já alguma vez estiveis apaixonados...? Se sim... Sabeis do que falho, em caso contrário, muito me pesa a vossa perda de não sentir essa luz que nos guia pela escuridão das nossas vidas até ao brilhar do nosso contentamento. Louco é quem diz que viveu e não amou, pois amar é viver, quem assim passou pela vida, não viveu na realidade, apenas existiu, a sua vida foi apenas uma vazio sem sentido...

         Mas voltemos para junto do nosso solitário corvo, antes que nos percamos nas asas da divagação e nos afundemos nas brumas das dúvidas que esta pena apressada deixa escapar... Percorrendo os ventos invisíveis das verdejantes planícies, vamos encontrar o jovem corvo junta a uma árvore, descansando a suas pobres e cansadas penas.

         Quando descansava junto à água fresca reconhece um vulto distante... Algo familiar... Mas mesmo assim estranho... Estaria alucinado? Será que a sua mente teria atingido o limiar da sanidade...!!? Julgava ter visto um membro da tribo dos Corvos, os sinais pareciam assim indicar...!! Mas a tribo tinha sido dizimada... Ou não teria sido? Ou seria um outro povo cujos sinais seriam similares? Seriam estes os inimigos do seu povo? Ou seria apenas uma ilusão provocada pelo cansaço e pela sede de vingança... Uma miragem provocada pela ansiedade de encontrar os responsáveis pela destruição do seu povo...!? Não o sabia. Apenas sabia que tinha de descobrir a verdade! Se fosse outro povo teria de ter cuidado, pois poderia ser o povo que destruíra o seu, e indubitavelmente ao vê-lo reconheceriam o povo que haviam dizimado em tempos passados e certamente não o deixariam descansar...  Deveria então ser discreto e procurar ter cuidado nas suas observações... Mas...? Onde se escondeu aquele misterioso ser? Distraíra-se momentaneamente nos seus pensamentos e logo aquele ser desaparecera. Agora tinha de encontrar o seu rasto, segui-lo e esperar que os Deuses o Guiassem no caminho correcto... Raven tinha a sensação de que ali se encontrava a solução para o mistério da sua alma, e a concretização do seu destino... Seria assim de facto? Ou seria apenas mais um actor neste palco da vida? Em breve Raven o descobriria...

         Raven apesar de ser filho do chefe da tribo dos Corvos ainda era muito novo e olvidava muito da estória do seu povo. A tribo não era mais do que uma grande família que estava junta para fazer face a necessidades comuns, cujos indivíduos isoladamente dificilmente poderiam fazer face. Mas como todas as famílias, também esta tinha segredos, segredos escondidos no baú das recordações... Memórias dolorosas, que por causarem dor eram deixadas como esquecidas no fundo da memória... Mas como todas essas memórias elas regressam quando menos esperamos... E o que Raven tinha presenciado iria leva-lo a uma viagem ao passado... Esse passado que fora escondido das novas gerações... Mas eis que ele volta e mostra-se quando menos é esperando... Mas Raven não poderia adivinhar essa parte do passado da sua tribo...! Como poderia?? Ele ignorava esse passado, pois sempre fora ocultado de sai e da sua geração.... Esperando assim enterrar esse passado nas águas do esquecimento, afoga-lo nas brumas do tempo e esperar que ele não sobrevivesse... Mas ele resistiu, e hei-lo que se prepara para se revelar diante o jovem corvo, e este, jovem ingénuo, não adivinhava o que estava para advir... Mas em breve iria descobrir toda a verdade, e todo o mistério seria revelado... Por agora encontrava-se longe de o compreender e de o conhecer... Perdido nas conjunturas erróneas, longe do que era a realidade...!

     
    Realidade ou ficção? O que será a vida se não um conto narrado na primeira pessoa? Todos nós julgamos ser donos da verdade, a nossa verdade! A nossa realidade! Nada mais é real, nada mais é verdadeiro, senão aquilo que nos concebemos como tal...! Mas em tudo aquilo que julgamos ser o nosso mundo apenas apreendemos uma parcela desse mundo. Todos os dias procuramos a verdade da vida... Qual o seu sentido... Quantas vidas desperdiçadas em busca do sentido da vida. Qual será o sentido da existência? Qual a razão de algo existir? Eis as perguntas que ocupam aqueles que procuram o sentido do existir. Mas no fundo o que isso importa? Que importa saber que sentido tem a vida? Que valor tem desperdiçar uma vida em busca do seu sentido e quando o descobrimos somos seres amargurados por termos desperdiçado essa mesma vida...? Que valor têm estas interrogações? Algo existe porque simplesmente existe, não é necessário existir razão justificativa... 

         Será que vossas vidas se tornaram vazias sem essa razão? Talvez... e se assim é malgrado a vossa sorte, pois a vossa vida não terá valor acrescido algum, será apenas um vácuo de existência, um receptáculo vazio de sentido, e no fim ireis concluir que sois inexistentes, e porquê? Porque haveis desperdiçado a vossa vida em busca do sentido da vida, quando ele estava no vosso seio. O sentido da vida é a busca da felicidade por cada ser vivo, e fazer do mundo que o rodeia o seu lar, e deste modo aceita-lo e respeita-lo...! Pois sendo infelizes sois inexistentes, sois um mero receptáculo vazio, uma forma sem conteúdo! E sendo infelizes espalhareis a semente da infelicidade em vosso redor... E jamais conseguireis integrar o mundo que vos rodeia...

         Não julgais que com minhas palavras vos convencem...! Longe do meu intento tal! Apenas vos advirto da falácia que é procurar o sentido da vida, que não na felicidade do Ego! Mas tende Cuidado! Pois a felicidade não pode ficar aprisionada na essência da pessoa, tendes de deixá-la transpor as fronteiras do vosso ser e contagiar os vossos interlocutores, porque uma felicidade contida no eu, é uma felicidade falsa e limitada, oca e desprovida de verdadeiro significado, a essência da felicidade é a sua partilha...

         Reparai no nosso personagem – Raven – mero instrumento nas mãos dos deuses. Será que vive? Diremos que respira e consequentemente vive. Mas é feliz? Direis que não. Pois quem pode ser feliz com toda aquela mágoa e sede de vingança contidas no seio do seu coração? Ninguém...! Então deixai-me perguntar-vos que sentido tem uma vida assim? Reflecti... Que Valor tem assim viver..? Dir-vos-ei que nenhum...!

         Viver...! Morrer..! Conceitos humanos que nos limitam a visão da realidade, ofuscados pelas nossas barreiras... O que é a vida? E a morte? São um mero momento...! Um instante que passou e depois já nada mais é...! Somos um momento vivido na felicidade ou desperdiçado na mágoa..! Não parai para chorar, senti o sabor amargo das vossas lágrimas e bebei o doce néctar do riso de um inocente criança; vede como ela é feliz... Só se sente triste quando lhe falta o amor e o carinho que lhe acalente o coração... E será que não seremos nós eternas crianças?... Quantas vezes não nos escondemos no escuro chorando pelos tempos perdidos da inocência? Tempos em que éramos felizes? Mas será que alguma coisa mudou verdadeiramente desde então? Ou fomos apenas nós que mudamos? Instigados por uma cultura que nos obriga a ser infelizes porque também ela o é... Mas quem disse que havia de ser assim...?

         Mas voltando ao nosso personagem, encontramo-lo a rasgar as planícies azuis do celeste firmamento, procurando aquela curiosa figura que se havia intrometido no seu caminho. Quem seria? Parecia um dos do Povo dos Corvos, mas no entanto era diferente... Seria uma mera ilusão? Uma imagem perdida no cérebro de Raven, revelada pelo turbilhão de emoções que o absorvia e clamava por ele, arrastando-o para campos cada vez mais profundos do seu existir. Seria real? Seria que alguém da sua tribo havia sobrevivido? Mas ele conhecia todos os membros da sua tribo, e aquele não conhecia.

         As ideias surgiam confusas e distorcidas, mil e uma suposições invadiam a sua mente e apenas uma certeza se impunha a todas as dúvidas que o assaltavam: havia que encontrar essa personagem misteriosa... Custasse o que custasse....

         E rasgando os azul dos céus, tingindo-o de negro com suas volumosas asas cobriu toda a planície, procurando.... Procurando um vulto, uma sombra... Mas apenas o vazio do silêncio encontrava a cada instante... Lá em baixo parecia que a vida tinha parado; mesmo nos céus ela parecia inexistir. A sua sombra imperiosa imponha-se sobre o solo fustigado pela erosão dos elementos, tudo o demais escondia-se da sua presença... 

         Todo o dia percorreu incessantemente os céus procurando um lampejo daquela sombra que havia encontrado num breve momento e depois havia perdido...  Nem um semblante de vida havia encontrado. A noite adivinhava-se, havia que descansar, o crepúsculo alaranjado crescia no horizonte, impondo a sua presença, arauto da noite chegava ledamente cobrindo de tons laranja fogo o que antes fora verde ou castanho...

         Raven entrou na floresta, procurava um local onde pudesse descansar, seu corpo estava exausto, sua mente fustigada, mas aquela sede de vingança, aquela necessidade de encontrar a sombra do seu povo, ardia, queimava as suas entranhas, todo o seu ser era queimado por aquela sede, por aquela dor que o assolava e consumia a cada momento, a cada instante da sua vida, ela lá estava, sem piedade lembrando-o que o havia criado e que o podia destruir.

         Encontrou uma clareira, parecia um bom sítio para repousar por instantes, para recuperar o fôlego, para depois partir em busca de alimento. A noite chegou calma e lenda, imperceptível, e a metamorfose sucedeu novamente o que era corvo em homem se tornou, fatigado, perdido nas ilusões de uma mente mergulhada num turbilhão de recordações fugidias, e aquela sensação de constante perda, Raven jazia junta a um velho carvalho.

         A lua regia a negritude da noite, envolvendo toda a vida com o seu manto negro. Toda a vida parecia adormecida na neblina que pairava sobre as folhas da vegetação, mas por entre as brumas disfarçadas de noites uma sombra movia-se, silenciosa como o vento passava disfarçada pelas sombras da noite. Um lobo que vogava ao ar da noite como uma alma perdida nas asas da perdição, lançando-se nas trevas procurando o fim da sua maldição.

         Uma sombra contempla outra sombra. Um lobo olhando um corvo feito homem, e naquele instante que da eternidade se fez um instante, o mundo passou despercebido entre as sombras que se olhavam, receando-se... Que faria o Lobo? Pensava Raven. Atacaria? Quase podia ver um brilho humano nos seus olhos, como se quisesse comunicar com ele... Quase parecia que aquele lobo teria alma humana. Seria possível?

         O que sabemos nós realmente do que nos rodeia? Apenas o que é apreendido pelos nossos sentidos, e quantas vezes estes não nos levam a perseguir loucas ilusões. A nossa percepção da passa disso mesmo, de nossa, condicionada pelos nossos limites, pelas nossas limitações, adulterada pelos nossos conhecimentos e suposições. Não era Raven também um corvo de dia com alma de homem? Quem poderia garantir que seria o único. A dúvida permanecia na mente de Raven... Mas em breve acabaria a dúvida e da certeza nasceria a cura da doença que consumia esse corvo errante... Mal podia esse corvo imaginar o que o futuro lhe reservava, tal longe do seu destino...

         E um uivo longe e tenebroso ecoa pela floresta rompendo os ramos dos carvalhos adormecidos, gelando o sangue de Raven, um uivo longo e próximo, e no entanto tão distante, perdido na agonia de um ser, esquecido na dor que quem não consegue amar, de quem se sente perdido num mundo que não é o seu, numa realidade que não compreende, preso nos desígnios de um universo que o prende à malha da roda da vida, e o arrasta sem dó nem piedade... Um uivo sonoro que irrompeu do fundo da alma daquele lobo, que uivando partiu como chorando não poder amar... Mas aquele olhar ficou... Aquele brilho humano nos seus olhos ardia na mente de Raven.

         Sentiu a tentação de seguir aquele lobo, ele parecia esperar por Raven, quereria que o seguisse? Quem o mandara e que procurava? Não sabia... Não podia responder... E partiu em busca das respostas...

         Sombras no céu, dançando no firmamento, correndo rapidamente pelas trevas, procurando ofuscar o brilho das luzes do universo. Mas a mais negra delas avançava sem olhar ao seu destino em direcção a um destino incerto tendo como guia um lobo desconhecido. Estranha guia esta... Mal sabia Raven que sentia o seu coração negro, que ouvia os seus pensamentos ecoando na mente como se ele os tivesse falado... Mal sabia o que aquele lobo lhe reservava...

         Após várias minutos de caminhada alcançaram o seu destino um homem deitado no solo frio da floresta aninhado num cobertor velho e usado, roído pelas traças do tempo, cheirando ao bolor da antiguidade... Raven olha incrédulo para aquele ser... Era a sombra que ele perseguira toda a tarde... Mas como? Como poderia aquele lobo o ter ajudado? Porquê? Como poderia ele alguma vez sabido o que Raven procurava...? Estranhos desígnios os dos Deuses... Tão depressa nos escondem a fortuna como nos relevam os seus segredos... Estranho jogo este que jogavam com Raven... Finalmente Havia encontrado o alvo das suas buscas, esquecera a fome, a sede e o cansaço, agora só tinha novamente um fito na sua mente... Saber o rumo do objecto da sua vingança... O Rumo dos Coiotes.

         Se Raven não estivesse cego pelo vermelho da vingança, se tivesse olhado para os olhos do lobo seu guia, veria que estes, como lendo a sua mente, olhando nos olhos de Raven, se entristeceram... E como que chorando soltou um uivo de tristeza e pena por aquela alma perdida. Havia lutado por lhe indicar o caminho, por lhe mostrar, no seu desânimo, que havia mais neste mundo que a tristeza e mágoa que lhe eram raízes, que nesse mundo negro, existe uma luz chamada felicidade, que nos banha e nos guia, desde que nos abramos a ela e nos deixemos guiar pelo seu condão.

         Impaciente por novas notícias, mal esperou e acordou aquele ser que dormitava no chão frio da floresta, que com ele dormia... Atordoado pelo susto de ter sido acordado por uma imagem negra e por um lobo levanta-se num salto, colocando-se numa posição defensiva, pronta a defender-se de qualquer potencial agressor, mas logo os contornos da sua face descontraíram, reconheceu Raven, filhos de Osgrod, o chefe da sua tribo.

         Pyros, assim se chamava aquela alma, era um membro da tribo de Raven e tinha escapado ao ataque dos coiotes. Contou que havia saído em expedição e quando voltava viu colunas negras saindo do local onde estaria o acampamento, no entanto chegado ao local, apenas restavam as cinzas do que fora a sua família, a sua mulher, os seus filhos, a sua tribo... Com a alma perdida partiu sem rumo procurando esquecer a dor e a mágoa que invadiam o seu coração... Procurando sem sucesso esquecer o que não podia ser esquecido...

         Pyros apressou-se a acordar o fogo que dormitava nas brasas, e este insultado por o terem desperto rebentou na sua fúria brindando-os com o brilho do seu calor. Os dois homens ficaram sentados junto à fogueira conversando. Raven contado a sua negra sorte e do curioso modo como havia encontrado Pyros... Conduzido por aquele lobo com olhos humanos, aqueles olhos que lhe queimavam a memória, pairando infinitamente, como clamando por algo que Raven não poderia compreender...

         Então Pyros contou-lhe a lenda de Moonwoolf. Em tempos idos, vivia uma bela donzela nas florestas negras onde agora os dois homens falavam, a sua voz trinava pelos ramos dos carvalhos fazendo inveja ao mais canoro dos rouxinóis, os seus olhos dois sois iluminando a vida, a sua beleza divina ofuscava a mais bela das flores. No entanto na fogueira do ciúme vivia uma maga, que apesar de poderosa não conseguia encantar o comum dos mortais como o fazia tal donzela. Um dia, enquanto o silêncio cobria o ar da noite e a lua escondia-se atrás do manto negro eclipsando-se num disco negro, o monstro verde da inveja levou longe de mais os propósitos daquela bruxa, e revolvendo o seu livro mágico lançou uma praga à doce donzela... enquanto o dia fosse dia, e ao dia sucedesse a noite, tal donzela que o seria de dia de noite seria uma loba que erraria pela floresta em busca do seu contrário, que de dia fosse animal e de noite homem, e só se encontrando no crepúsculo nascente, e no pulsar de um beijo é a vida voltaria a ser vida, e nunca mais se desencontrariam...

         E Raven sentiu que aquele lobo era a da lenda, e que sabia bem o que aquele ser sentia, pois também ele era um ser amaldiçoado, mas estariam eles fadados para se encontrarem e quebrar a sua maldição? Quem saberia? Nem os Deuses poderiam saber... O destino tece estranhas malhas que nos envolvem numa roda que gira incessantemente até chegar ao seu destino e para além dele...

         Perdido nos seus pensamentos Raven perdeu o fim da narração de Pyros apenas ouviu os rumores das frases de Pyros ecoarem na sua mente de que tal loba conseguia ouvir a voz da alma que habitava nos seres vivos e sentir o pulsar dos seus pensamentos... Então foi isso! – Pensou Raven  - Ela deve ter lido o meu pensamento e sentiu o meu destino, sentiu a minha dor e veio em meu auxílio... Pois nos dois éramos iguais, tão diferentes e tão similares...

         E imperceptivelmente e sub-repticiamente um sensação crescia no interior daquela alma, uma centelha de luz acedeu-se nas trevas densas e escuras da alma de Raven. E no seu interior começava a luta da luz pela conquista das trevas, que sairia vencedor naquela luta eterna? A luz do amor? Ou as trevas da vingança? Só o futuro o diria...

         A noite ia alta quando finalmente Raven teve a coração para perguntar o que ele sabia sobre os coiotes. E eis que o passado escondido da sua Tribo se releva diante dele... E a chama da verdade esmaga aqueles que são confrontado pela primeira vez diante tal força oculta... Os coiotes era o povo das estepes, e sempre fora um povo pacífico e nunca fizera mal a outros povos, até ao dia em que o filho do chefe da tribo coiote entrou no território dos Corvos sem a autorização de Osgrod, e esta para servir de exemplo a todos os povos humilhara o jovem guerreiro e acabara por o torturar, acabando por morrer das agruras que sofrera... Quando fora buscar o corpo do seu filho, o chefe dos coiotes fora recebido como um foragido, como um criminoso, e jurara vingar a morte do seu filhos... E Assim foi... Vingou o seu filho destruindo aqueles que havia morto o seu maior bem...

         Raven ficou pensativo... Que fazer? Continuar a alimentar a roda da vingança ou parar e esquecer...? Mas como poderia ele esquecer a dor no rosto dos seus familiares enquanto morriam? Como poderia ele esquecer a sua própria dor? O cheiro a sangue quando renasceu? As cinzas que o banharam...? Não podia... Simplesmente não podia...

         O dia nascia e Raven temendo revelar o seu segredo despediu-se do seu amigo com a promessa que voltaria em breve, e partiu em direcção ao povo coiote, com a vingança na sua alma, e a dor no seu coração, deixando atrás de si mais um amigo, um aliado que se lhe juntaria quando preciso fosse, contra um inimigo comum: os coiotes! Era noite quando partiu, teria de descer até ao sopé da montanha como Homem que era, não poderia servir-se das suas asas de plumas feitas, e voar até lá... Bem mais cómodo seria abrir as suas asas e voar rumo ao seu destino, pensava que já fizera mal sair ao meio da noite, teria sido melhor aproveitar a hospitalidade dos seus novos amigos, e partir pela manhã quando fosse novamente corvo, mas não assim era melhor... Eles não sabiam do seu segredo... E assim é que deveria continuar a ser...

         Sentindo os gritos de dor da neve esmagada sobre a pressão dos seus pés iniciou o seu rumo, em direcção ao sopé da montanha. Após alguns minutos de caminhada, viu um vulto escuro estendido no manto branco da neve que gelava a almas dos viajantes, que se aventuravam nessas noites... Parecia gemer de dor e de sofrimento, voando sobre si mesmo, apresou-se em chegar junto do vulto... Era um homem já envelhecido pelo passar dos tempos, de cabelos e barba branca, contrastantes com o seus olhos escuros e profundos, jazia ferido, vertendo o seu vermelho sangue sobre o puro branco da neve... Apoiando aquele corpo doente e debilitado, Raven levou-o para uma caverna próxima, que o velho sábio lhe indicara... 
         Já no interior da caverna, que apesar de húmida era bastante agradável graças ao crepitante calor que fugia da fogueira que ardia no seu interior... Agradecido por o ter ajudado, O velho sábio, como veio a descobrir Raven que assim era conhecido aquele ser, contou o que lhe havia sucedido... Dois membros do clã dos coiotes haviam chegado perto da sua caverna, e haviam descoberto o velho sábio escondido junto dela... Descoberto no seu esconderijo, tentou fugir, mas as suas pernas já estão cansadas, e são velhas, e logo sucumbiu perante a perseguição dos seus adversários, que uma vez tendo-o no seu poder infligiram-lhe duros golpes, deixando-o como morto e partiram em direcção ás estepes onde iriam juntar-se ao resto do clã...
         Mas agora estava salvo, graças a Raven, não que esperasse viver muito mais, mas pelo menos podia morrer no calor da sua casa... E entre conversas amigáveis, a noite ia passando... Cansados acabaram as cordialidades e foram dormir... Raven já dormia, quando um agudo e sombrio grito ecoa pela caverna, acorda sobressaltado, e vê o velho sábio agarrado ao peito, corre para junto dele e toma-o nos seus braços... Mas já era demasiado tarde... nada mais podia ser feito... nada mais havia a fazer, se não orar pela sua alma...
         O velho sábio deixara escapar o último suspiro de vida dos seus pulmões, jazia agora sem vida nos braços de Raven. A velha águia cansada podia agora abrir as asas pela última vez e voar rumo ao descanso eterno... A manhã ameaçava nascer, tinha de se apresar, cavaria a sepultura mesmo no interior da caverna, seria como um santuário, onde ele tinha vivido os últimos dos seus dias, e onde podia agora descansar em paz... Abriu a vala, e colocou cuidadosamente o corpo cansando e despejado de vida, e tapou-o com a terra sagrada, que o acompanharia no sono eterno...
         Saiu da caverna, ao longe o sol nascia envergonhado, e num ramo próximo uma águia que dormia, acordava... Mas algo de estranho trespassava daquele ser, parecia que Raven o conhecia e lhe era familiar, impossível.... Sentia que o velho Sábio que acabara de enterrar, tinha renascido naquela águia e lhe queria indicar o caminho para as estepes... Seguindo o seu instinto, confiou naquele ser dos céus e seguiu-o, não faltaria muito, poderia segui-lo pelos ares..., 
         Caminhando em direcção às estepes, onde esperava encontrar o povo que destruirá o seu, via o raiar do sol banhar aquelas terras que se estendiam diante de si, e no céu ouvia os gritos apaixonados de uma águia que clamava a sua presença no azul do firmamento... Não tardaria juntar-se-ia a ela, e juntos voaria para as estepes... Já faltava pouco.... E então estaria nas estepes geladas pela primeira vez...
         E o dia chegou.... E o Corvo brindou o sol com as suas asas... mas o infortúnio mais uma vez apareceu, e a águia desapareceu dos céus, morta por uma seta de algum caçador mais ousado, e sentindo o perigo Raven refugiou-se em alguma árvore próxima, esperando que os caçadores partissem... mas o dia passava e eles continuavam na sua caçada, roubando à natureza os seus filhos, matando e destruído tudo o que se movesse... O Sol já se deitava quando finalmente eles decidiram partir... Mais uma vez teria de se aventurar na noite para prosseguir o seu caminho, e mais uma vez teria de percorrer todo o percurso a pé....  
A noite chega calma e furtiva trazendo consigo os encantos gélidos das trevas. O branco iluminado do dia, cedeu lugar ao branco negrume da noite. As estepes continuavam pintadas do branco gelado que caía dos céus em cândidas lágrimas vertidas. O vento corria livremente pelos caminhos agora desertos. Chegara o frio e o gelo, nos caminhos apenas as sombras brincavam com os ramos gelados que abraçavam a vestal brancura das neves que se alojavam no seu seio. Caminhamos despercebidos, por esses caminhos desertos, absortos nos nossos pensamentos, invisíveis para os poucos seres corajosos que se aventuraram no gelo da noite. Mas algo, lá distante, no seio das estepes, mexia, seguindo os cambiantes das sombras escondidas nos recém escurecidos caminhos, uma figura sombria, marcada pelas agruras de uma vida de dor e desespero avança cautelosamente, procurando vencer o seu destino...
         Raven avançava pelo tapete branco que se estendia perante os seus pés. Como contrastava a pureza cândida da neve com a negritude da sua alma. No entanto, em algo eram gémeas, ambas eram geladas... Uma pela natureza, e outra pela tristeza! Todos aqueles que amava lhe haviam sido arrancados prematuramente, e mesmo o recém feito companheiro lhe havia sido roubado pelo destino... Mas não importava ele era mais forte... ele poderia vencer o próprio destino, e rebelar-se conta a vontade dos Deuses... Até podia ser que eles tentassem impedi-lo de chegar às estepes, e alcançar os seus inimigos, mas ele iria conseguir faze-lo... E Na verdade consegui... Amanhecia novamente quando Raven entrou nas estepes pela primeira vez... Inteligentemente decidiu aguardar a chegada da noite, e dormir numa árvore vizinha, pois seria difícil defrontá-los enquanto corvo... A vingança esperava por momentos, mas eles iriam sentir o metal frio da sua sede... iriam pagar por tudo o que lhe haviam feito.... Em breve... Muito breve...

        


 Repousava nos braços caídos de uma arvore quando sente uma bela donzela aproximar-se de si, e na sua voz angelical dirige-se a ele:

         - Raven..! Ouve-me por favor... – Exclamou – O meu nome é Moonwoolf, já nos cruzamos uma vez, era eu loba... Procurei-te todo o dia, sei que temos poucos momentos pois a noite chega e com ela a minha maldição e a tua. Quando olhei nos teus olhos vi algo de belo. Tu não és esse anjo vingador... Será que vale a pena, os teus amigos e familiares estão mortos, será que queres desperdiçar a tua vida numa cruzada sanguinária... Será que vale a pena? Valerá verdadeiramente a pena? O ódio só gera ódio, o resultado da vingança é nova vingança... Essa nuvem negra que paira na tua sombra tem de partir... Ouve-me... Por favor...

         Como sentindo que Raven a não ouvia e sentindo que não conseguiria mudar o que ele sentia partiu em direcção à floresta... Raven podia sentir a sua dor, e no entanto também sentia a paixão nas suas palavras... E corvo chorou... Pelo amor que não podia viver, pois havia hipotecado a sua vida à vingança... E por ela devia morrer... Era esse o seu destino...

         Mas seria verdadeiramente? O fado da nossa vida corre estranhos leitos até à foz....

         O prenúncio da noite chega... E com ele a escuridão... A lua ergue-se majestosamente sobre a vida terrena... As estrelas pintalgam o pano negro estendido sobre a mesa do universo e a vida adormece. Mas Raven acorda, desperta da sua maldição e parte em busca de um povo inimigo... Parte com a sede de vingança no sangue... Pulsando... Exaltando... Os Deuses divertem-se! Riem do destino de Raven, mas no fim será Raven o vitorioso... 

         Após breves instantes chega junto aquele povo, e olhando para ele recorda-se do seu, e pensa que se como Moonwoolf não teria razão... Será que valeria a pena vingar? Não seria o seu pai o causador de todo o mal que se abatera sobre a sua tribo? Mereceria aquele povo mais castigos, além de já ter perdido um filho?

         No meio do acampamento viu um grupo ser castigado. Quem seriam? Que tinham feito? Eram coiotes, disso não havia dúvidas... As marcas não deixavam enganar...

         Curioso chegou perto do acampamento e foi então que foi detectado por um vigia, e quando esperava ser recebido por ponta de armas afiadas, foi recebido por abraços fraternos e diante dele o chefe dos coiotes ajoelhou-se chorando, e reconhecendo-o disse-lhe:

         - Perdoa-me jovem corvo... Raven meu filho. Cometi um erro enorme... Matei a tua tribo, perdoa-me, foi a ira de ter perdido o meu filho, mas além do meu filho perdi a minha vida para as garras da vingança... perdoa-me se fores capaz...

         E perante aquelas lágrimas sinceras Raven ficou confuso sem saber o que fazer... Concederia o perdão? Ou exigiria a alma daquele ser? Apesar da guerra contra o seu povo ser motivado pela ira da vingança ainda restava o ataque aquele velho sábio... 

         Levantando o chefe pelos ombros pergunta-lhe porque puniam aquele grupo, e eis o choque da resposta... Como uma simples palavra, uma frase mínima muda o rumo dos sentimentos... Aquele grupo havia ataco o sábio ancião, que habitava a caverna, e como tal, pela lei da sua tribo tinham de ser castigados...

         E então Raven viu o erro em que vivia... Não poderia matar aquele povo... Estava cego pela vingança, Moonwoolf estava certa a vingança só leva a mais vingança, se não parasse aqui nunca pararia... Mas pararia, agora parava...

         E a luz ganhou a luta... O coração de Raven ficou despejado de qualquer trevas e na sua alma apenas havia lugar para o amor... E no seu interior revelou-se-lhe a paixão por uma loba, e nas asas de um relâmpago apressou-se a partir recusado os pedidos que ficasse naquele povo... Mas algo mais forte imponha-se a Raven, tinha de a encontrar e acabar com a maldição... Destas vezes os mortais riam dos Deuses... E o Cupido jocoso, ria... ria dos seus pares...

         A noite estava perto do fim e Raven perdido na floresta sem encontrar a loba dos seus desejos. Procurava... Procurava mas sem sucesso... A lua já dançava com o sol, no seu bailado fugaz e eterno quando finalmente a encontrou... Olhou nos seus olhos e viu que ela sentia o mesmo que ele... Ela sentiu logo o que havia sucedido, e Raven ficou sem palavras...

         E no silêncio de um olhar tudo fora dito... Mas aquele amor era impossível, como o quebrar...? E a dor voltou ao coração de Raven, mas desta vez a dor queimava, ardia no seu âmago, amar e não poder... Querer ser feliz e não conseguir... Hipnotizado no olhar do seu amor, naquele momento em que a eternidade foi efémera e o tempo parou, Raven, morreu como anjo e nasceu como homem.

         Dos seus olhos nasceram em cascata gostas de oceanos perdidos nas brumas do tempo e gotas de amor destiladas pingaram sobre os doces olhos castanhos de Moonwoolf... E o sol nasceu e a loba fez-se mulher, e Raven continuou a ser o que era... Um Homem!

         E o sol bailou no sorriso de MoonWoolf... o feitiço havia sido quebrado, podia ficar juntos a eternidade, e no suspiro de um beijos juntaram os seus lábios, e a lua e as estrelas bailaram em redor do sol, brindado e abençoando aquela união amaldiçoada pelos Deuses, mas protegida pelo destino e pelo amor...

         As trevas haviam perdido este combate, a luz e o amor haviam destronado a vingança e as trevas... E mais uma vez o destino fugiu às mãos dos Deuses galhofeiros e havia-os atraiçoado, roubando-lhes um anjo vingador, tornando um seu instrumento numa alma livre...

         E sobre o céu azul de um novo dia, uma nova esperança de futuro nasceu para uma alma outrora destruída pela dor e mágoa renasceu para o amor e a felicidade...


         E das trevas nasceu a luz...